Contextualização – a reorganização da rede paulista

A reorganização escolar da rede estadual de São Paulo foi apresentada pelo Governo do Estado na data de 23 de setembro, como resposta à tendência de queda de 1,3% ao ano da população em idade escolar no Estado de São Paulo. Entre os anos de 1998 e 2015, a rede estadual de ensino perdeu 2 milhões de alunos. A Secretaria de Educação do Estado identificou que esse movimento demográfico acabou por gerar ociosidade das escolas da rede, o que deveria ser corrigido a partir da reestruturação dos ciclos de ensino nas escolas e do fechamento de um determinado número de estabelecimentos.

Foi a partir dessa conjuntura que organizou-se em todo o Estado de São Paulo um movimento orgânico dos estudantes secundaristas contra a reorganização e o fechamento de escolas. A favor da concessão de voz ativa à comunidade escolar, os estudantes passaram a ocupar suas escolas e a questionar as motivações das mudanças previstas pelo Governo do Estado. O movimento atingiu 200 escolas ocupadas e obteve, no dia 5 de dezembro,  a suspensão da reorganização da rede estadual pelo Governo do Estado, mérito da manifestação contínua do interesse do corpo discente em participar ativamente das decisões que afetam sua trajetória escolar.

O cenário das escolas ocupadas

No mesmo sábado dia 5 de dezembro em que o Governo decretou a suspensão do processo de reorganização, o Grupo de Estudos Econômicos em Educação da USP organizou visita a duas escolas ocupadas, a fim de captar com maior clareza as demandas dos estudantes e as impressões acerca da decisão política do Governador Geraldo Alckmin.

As duas escolas visitadas, localizadas na Zona Oeste do Município de São Paulo, impressionaram pela absoluta arrumação de seus espaços. As escolas Professor Antonio Alves Cruz e Fernão Dias Paes tinham seus pátios, corredores, banheiros e salas de aula em perfeitas condições, em função da contínua patrulha e limpeza por parte dos alunos ocupantes. Segundo os estudantes, em admissões orgulhosas, aquelas escolas nunca estiveram tão bem cuidadas. Dignos de nota eram também os serviços de reparo e manutenção realizados pelos alunos (e suas famílias) nos espaços escolares, como a pintura de salas de aula, o conserto de vasos sanitários e a instalação de chuveiros. Um cenário admiravelmente harmonioso, comum aos dois prédios escolares. Um confortável ambiente gerado pela união e organização dos estudantes como partícipes de suas escolas.

Segundo os estudantes, em admissões orgulhosas, aquelas escolas nunca estiveram tão bem cuidadas.

Em pleno sábado à tarde, os corredores e pátios das duas escolas estavam repletos de estudantes, invariavelmente contentes em se sentir parte da escola. Enquanto conversavam sobre assuntos cotidianos, davam lições a mais de uma dezena de visitantes interessados em como funcionava a autogestão escolar. Com propriedade de educadores e confiança de protagonistas de suas vidas, apresentaram o refeitório – onde mães (na Fernão Dias) e alunos (na Alves Cruz) cozinhavam em amplas panelas – e os pátios centrais, onde aconteciam eventos culturais.

Na escola Fernão Dias, presenciamos a realização de uma oficina de pintura, ministrada por um ex-estudante de Arquitetura na USP. Na oficina, os estudantes produziram manilhões com diversas alegorias da ocupação, posteriormente afixados em um dos corredores da escola. Durante toda a atividade, os estudantes demonstraram total abertura para conversar sobre suas realidades educacionais e explicar a razão dos movimentos de ocupação. Mais tarde, na mesma escola, um grupo de teatro profissional apresentaria a peça Gota d´água, de Chico Buarque. Já na escola Alves Cruz, os alunos se revezavam entre assistir aos shows da Virada Ocupação – que ocorria na praça em frente à escola – e a organização da estrutura de telão para transmissão de um filme no pátio da escola.

Visita às escolas ocupadas

Oficina de pintura na Escola Estadual Fernão Dias Paes

Em ambas as escolas, todas as decisões são coletivas, em um complexo modelo de autogestão que inclui assembleias diárias (muitas vezes mais de uma por dia) e responsabilização de tarefas na manutenção da ocupação (cozinha, limpeza, segurança, articulação, mobilização, entre outras). A escolha dos temas das oficinas culturais, o recebimento de doações de livros, víveres e aulas, a comunicação com a imprensa, tudo é democraticamente organizado, sem hierarquia entre as responsabilidades. As escolas também participam de conselhos unificados das escolas ocupadas para traçar ações conjuntas contra a reorganização, além de estarem amplamente articuladas às outras escolas ocupadas da região.  É realmente fantástica a rede criada entre os ocupantes para troca de informações e, principalmente, compartilhamento de víveres: quando há algo em falta em uma escola que esteja abundante em outra, os estudantes se organizam para levar, de ônibus na maioria das vezes, os mantimentos às escolas necessitadas.

Oficina de pintura na Escola Estadual Fernão Dias Paes

Oficina de pintura na Escola Estadual Fernão Dias Paes

Os anseios de jovens e crianças transformadores

Nas conversas com os estudantes que ocupavam as escolas, buscamos compreender as demandas para além de barrar o projeto de reorganização. Demonstrando enorme maturidade, alguns desses estudantes manifestaram que o desejo maior era ver os alunos participando das decisões escolares, hoje concentradas em uma gestão fechada e conservadora. Assim poderiam garantir um ensino para a vida que reforçasse o protagonismo juvenil, o potencial transformador, com atividades no contraturno que estivessem de acordo com os interesses dos estudantes, como teatro, música e pintura, além de espaços de debate coletivo como as frutíferas assembleias que eles vinham organizando. Assim poderiam garantir uma escola mais aberta, inclusive aos fins de semana, como um espaco de convivência dos jovens e da comunidade em seu entorno.

Os estudantes ainda expressaram a vontade de manter a rede de diálogo entre os estudantes das escolas próximas, rede essa que só foi criada dada a conjuntura de apoio mútuo para manter a ocupação. O objetivo seria realizar projetos conjuntos e aproximar os estudantes da rede estadual, hoje muito fragmentados e sem poder de participação nas decisões dos gestores educacionais. Além disso, os estudantes da Fernão Dias manifestaram o desejo de que criar um espaço para comunicação entre os estudantes de toda a escola – “um mural bem grande para a gente poder expressar, com liberdade, o que a gente pensa”.

Apesar da Secretaria da Educação tratar as ocupações como movimentos partidarizados e empreender “táticas de guerrilha” para desmobilizar os estudantes, ficou patente nas visitas que os estudantes dessas escolas têm um único compromisso: buscar o direito à uma Educação de qualidade, que os prepare para a vida. O período de ocupação foi, para eles, extremamente enriquecedor, dado o desenvolvimento político e cidadão que o cenário de ocupação ensejou. No entanto, os estudantes têm a consciência de que estão perdendo conteúdos importantes para suas formações e é imperativo voltar a ter aulas regulares, porém com uma forma de didática que seja mais interessante e estabeleça relações com o cotidiano dos alunos. O problema, segundo eles, seria a posição majoritariamente contrária dos professores ao movimento de ocupação.

Da mesma maneira, os estudantes que foram às ruas protestar contra a reorganização nada mais faziam que lutar pelo direito à Educação de qualidade e por poder ter voz ativa nas decisões escolares. Receberam do Governo do Estado o tratamento nada amigável da Polícia Militar, intransigente e violenta. Na Fernão Dias, por exemplo, dois jovens de 15 anos de idade nos mostraram hematomas, feridas e pontos, resultados da truculência policial durante as manifestações. Ambos, mesmo não tendo agredido nem oferecido resistência aos policiais, foram imobilizados e presos pelo simples fato de estarem compondo atos contra a reorganização. Nesse contexto, é demanda geral dos estudantes das escolas visitadas a punição aos Policiais Militares que cometeram excessos, sendo inclusive condição fundamental para o fim das ocupações estudantis.

Colaboraram:

Caio Callegari

Gabriela Thomazinho

Ives Fernandes