Texto produzido em parceria com Gabriela Campos, a partir da reunião do Grupo de Estudos Econômicos em Educação do dia 08/10/2016, sobre a “MP da Reforma do Ensino Médio” – sua origem e possíveis efeitos.

 

A reforma do Ensino Médio brasileiro, proposta pela Medida Provisória nº 746, foi apresentada pelo Governo Federal no dia 22 de setembro de 2016. Esta Medida Provisória (MP) pretende modificar o Ensino Médio em vários aspectos, como a flexibilização por meio de itinerários formativos, a expansão da jornada de tempo integral, a exclusão da obrigatoriedade de algumas disciplinas, a introdução da possibilidade de contratação de profissionais que não tenham formação em área pedagógica, mas que demonstrem notório saber, entre outros.

A reforma proposta gerou reações favoráveis e contrárias de especialistas e estudantes, colocando o tema no centro do debate educacional. Desde o anúncio das medidas, estudantes secundaristas realizaram um movimento de ocupação de suas escolas como forma de protesto à reforma, chegando a mais de 800 escolas.

Reforma por MP – o que o formato diz sobre esta reforma?

Um dos principais pontos de polêmica é o formato de proposição da medida pelo Governo – uma Medida Provisória. O Governo justifica a utilização da Medida Provisória como instrumento de urgência (com tramitação acelerada) pela necessidade de efetivação da reforma antes de 2018, dado que a possibilidade de implementação será restrita em ano de eleições federais e estaduais. Driblaria assim a aludida morosidade do Congresso Nacional, que pouco avançou na tramitação do Projeto de Lei nº 6.840 de 2013 – cujo conteúdo é em muitos pontos semelhante ao texto original da MP.

Certamente a situação dramática da Educação brasileira, em particular o Ensino Médio brasileiro, tem caráter de urgência. Porém, realizar sua reforma a toque de caixa – como sinaliza a MP, que prevê apenas 120 dias de discussão do tema – não é adequada para uma mudança tão abrangente. O curto espaço de tempo de tramitação do texto atual reduz a possibilidade de incidência de vozes menos organizadas (como dos estudantes de todo o país) e acaba por levar a uma perniciosa falta de detalhamento da implementação. Nesse cenário, o Brasil pode ser levado a ficar completamente engessado a um novo formato que não sabemos como será recebido pela comunidade escolar nem como será tirado do papel.

O Ministério da Educação (MEC) afirma que irá detalhar em portarias os múltiplos pontos que ainda estão em aberto e/ou vagos, o que ainda não tem nenhum sinal de que esteja sendo realizado. Fato é que, sem um plano de implementação detalhado (incorporando questões de financiamento e apoio às redes estaduais), é impossível entender como efetivamente será realizada a reforma para uma avaliação de seus possíveis efeitos.

É importante repisar: a Medida Provisória terá força de lei após sua aprovação, ficando o Ensino Médio engessado no formato aprovado e qualquer nova mudança deverá passar novamente pelo Congresso. Dado o caráter de novidade da reforma, seria importante haver certa flexibilidade para ajuste do formato do Ensino Médio, incluindo aprendizados durante o processo de implementação das redes estaduais.

Como um formato mais adequado para a reforma, uma alternativa seria um processo de discussão com a sociedade civil similar ao processo de construção da Base Nacional Curricular Comum, em que educadores, professores e redes estaduais foram convidados a contribuir para a Base, sendo as contribuições analisadas e discutidas em conjunto. Outra possibilidade  seria a utilização das Diretrizes Nacionais do Conselho Nacional da Educação como instrumento jurídico no lugar da MP/Projeto de Lei. As Diretrizes Curriculares são definidas pelo poder Executivo, garantindo uma maior flexibilidade em relação ao Congresso para futuras mudanças e adequações no Ensino Médio.

Educação integral – questões na oferta e demanda

O fomento ao Ensino Médio em tempo integral (7 horas-aula diárias) aparece como um dos principais pontos da MP. O artigo 24 do texto da Medida afirma: “A carga horária mínima anual de que trata o inciso I do caput deverá ser progressivamente ampliada, no ensino médio, para mil e quatrocentas horas, observadas as normas do respectivo sistema de ensino e de acordo com as diretrizes, os objetivos, as metas e as estratégias de implementação estabelecidos no Plano Nacional de Educação.”

(Nota de atualização: esse ponto posteriormente foi modificado pelo relator da MP no Congresso, Senador Pedro Chaves, com meta intermediária de oferecimento de mil horas-aulas no prazo de cinco anos)

Na prática, isso significa cumprir a meta do Plano Nacional de Educação de, até 2024, 50% das escolas oferecerem ensino integral, abrangendo 25% do total de alunos. Dentro de um sistema em que o principal custo é a carga horária dos professores e 24% dos alunos estudam em ensino noturno [1], a expansão do ensino integral rápida parece pouco assertiva tanto pelo lado da oferta, quanto pelo lado da demanda.

Do ponto de vista da oferta, a questão fundamental é como as escolas conseguirão expandir a disponibilidade de aulas, professores e espaço. A carga horária de professores atualmente é o maior custo das escolas e necessitará ser ampliada em 75% para implantação de uma jornada de 7 horas diárias.

Nesse cenário, o Brasil pode ser levado a ficar completamente engessado a um novo formato que não sabemos como será recebido pela comunidade escolar nem como será tirado do papel.

Pelo lado da demanda dos alunos, o ensino integral da maneira como é proposto em algumas redes não parece atender às necessidades de todos os alunos. Relatório do Tribunal de Contas de São Paulo e estudos do Cenpec indicam que jovens de situação mais vulnerável abandonam o ensino integral, gerando muitas vezes situação de superlotação nas escolas vizinhas. Motivos de abandono variam da necessidade de conciliar estudos e trabalho, a falta de interesse nos temas ou em passar mais tempo na escola. Diante desse quadro, se a educação integral não tiver ações com o objetivo de atrair e reter os estudantes em situações mais vulneráveis, a expansão do ensino integral pode ter um efeito de alargar as desigualdades educacionais.

Para uma escola de ensino integral trazer bons resultados para a educação no Brasil, seria necessário não apenas aumentar a carga horária, como repensar as atividades realizadas dentro da escola. Uma educação integral deve trazer de fato uma perspectiva de educação integrada à vida do aluno, seja pela sua articulação com a comunidade escolar e com a vida do aluno, seja pela integração entre as diversas disciplinas propostas em seu currículo. A preocupação sobre como atrair e reter os jovens de famílias vulneráveis também deve ser um dos aspectos integrantes dessa política – embora nada disso esteja enunciado na Medida Provisória.

Mudanças no ensino médio – o que os jovens querem e o que a MP entrega?

Há sem dúvidas um diagnóstico bastante claro de que o Ensino Médio brasileiro atual tem resultados muito ruins, tanto do ponto de vista do alto índice de evasão, como pelo baixo desempenho acadêmico em diagnosticado pelo IDEB, pelo ENEM e por indicadores internacionais. Existe um consenso de que mudanças são necessárias e urgentes, de que a agenda educacional brasileira deve seguir passos largos em direção a um novo Ensino Médio.

Mas para uma política de Ensino Médio que realmente entregue transformações estruturais com qualidade, é importante entender também o que os jovens querem, o que jovens entendem por uma escola que seja atrativa e construtora de aprendizagens. O Porvir e Instituto Inspirare [2] realizaram este um ano um estudo com jovens entre 13 e 21 sobre como eles gostariam que suas escolas fossem. O estudo envolveu os jovens desde a concepção dos questionários à mobilização para que o maior número de estudantes respondessem às perguntas.

No total, mais de 130 mil alunos foram envolvidos e os resultados indicam os principais desejos dos jovens: sobretudo, um maior poder de escolha para sua trilha formativa e conteúdos escolares que dialoguem com suas realidades. Eles também pedem uma formação que aborde os direitos humanos e a cidadania, preparando-os para relações sociais e ações políticas. De forma geral, os jovens querem que a escola se conecte com as suas vidas.

Observando esse ponto especificamente, a reforma proposta pela MP nº 746/2016 afirma entregar maior proximidade da realidade com flexibilização por meio dos itinerários formativos, a aplicação de metodologia de projetos interdisciplinares e uma menor quantidade de disciplinas obrigatórias. Porém, em nenhum momento é explicitado como isso ocorrerá.

Mas para uma política de Ensino Médio que realmente entregue transformações estruturais com qualidade, é importante entender também o que os jovens querem, o que jovens entendem por uma escola que seja atrativa e construtora de aprendizagens.

A MP propõe 5 grandes áreas para aprofundamento:  linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional. A ideia é que o aluno cumpra um ciclo obrigatório da carga horária de metade do Ensino Médio, e depois se especialize em um dos 5 itinerários. Uma questão levantada é que a autonomia dos estudantes seria restrita aos itinerários ofertados pela rede ou pela escola, pois as escolas não serão obrigadas a ofertar todas as 5 grandes áreas. Não está definido pela MP como será decidido qual itinerário será ofertado em cada escola, nem se todo o estudante terá assegurada a matrícula no itinerário que deseja cursar. Caso contrário, o jovem poderá ser obrigado a cursar um itinerário pela ausência dos demais.

Outra crítica levantada é que os itinerários poderiam aumentar a desigualdade educacional social entre os alunos. Não está claro na MP como os alunos serão alocados nos diferentes itinerários. Por exemplo, se um determinado itinerário tiver uma procura maior do que sua oferta, quais alunos terão a matrícula garantida? As escolas poderão fazer provas para selecionar os alunos? Em caso positivo, os efeitos sobre a desigualdade podem ser grandes, pois o rendimento escolar dos estudantes é bastante influenciado pelo nível socioeconômico dos pais.

E mesmo se a decisão do itinerário couber inteiramente ao aluno, é preciso lembrar que esta decisão é bastante influenciada pela sua origem social e seu percurso educacional anterior. O próprio Ensino Fundamental 2 é deficitário e desigual, e para garantir a equidade de oportunidades é imprescindível que os alunos tenham os meios para uma escolha qualificada sobre os itinerários.

Entrando na questão da evasão escolar, ela se mostra mais ligada à resiliência dos alunos, levando em conta a visão de futuro e projeto de vida. Há uma alta taxa de evasão na virada do nono ano do Ensino Fundamental para primeiro ano do ensino médio, taxa que continua elevada em todo o Ensino Médio. Fica a questão: como a mudança de currículo poderá afetar o engajamento destes alunos?

Ao fim e ao cabo, a proposta de reforma de Ensino Médio expressa na MP nº 746 parece esvaziar dessa etapa escolar o significado de ser parte da Educação Básica, uma etapa em que todos os jovens deveriam ter iguais direitos de aprendizagens elementares para suas atuações profissionais e cidadãs. Sem um claro desenho de implementação, a proposta pode desencadear uma especialização precoce dos jovens, sem que sejam oferecidas oportunidades de reversibilidade de escolhas e privando um contato com outras áreas do conhecimento que expandam os horizontes de interesses.

Os riscos da MP e o papel do Ensino Médio no Brasil

Como síntese da discussão sobre a reforma do Ensino Médio proposta, chegamos aos principais riscos da Medida Provisória 746/2016:

  • Visão de curto prazo comprometendo a visão de longo prazo – urgência na implementação levou a primeiro trazer um plano de curto prazo, para depois ser realizada a discussão de longo prazo
  • Falta de clareza sobre principais pontos da MP – pontos mais polêmicos da MP, como financiamento e novo currículo ainda serão detalhados por portaria. Falta de transparência dificulta o debate.
  • Contradição da MP com a PEC 241 – Enquanto por um lado o MEC propõe uma reforma que aumenta os gastos com a educação, com pontos como expansão do ensino integral e diversificação de itinerários, por outro lado o Governo Federal busca aprovar um teto de gastos para a educação. Apesar da maior parte dos gastos para Ensino Médio vir das redes estaduais, é difícil visualizar como a reforma proposta poderá ser efetivada em um momento de corte de gastos.

 

Na avaliação desses riscos e do potencial sucesso da reforma, o ponto central de todo o debate parece ser, essencialmente: “Qual o papel que o Ensino Médio deve ter no Brasil? Como essa etapa educacional está articulada a um projeto de país? ”

O trabalho de Hall e Soskice compara os sistemas educacionais de Economias Liberais (Liberal Market Economies), como Estados Unidos e Inglaterra, em que há maior mobilidade dentro dos mercados de trabalho, com Economias de Coordenação de Mercado (Coordinated Market Economies), como Alemanha e Países Nórdicos, em que os mercados de trabalho tem posições mais estáveis. O que se nota é que em Economias Liberais, o jovem entre 15 e 19 anos tem uma formação mais geral para depois se especializar no ensino superior. Já nas Economias Coordenadas, a maior parte dos jovens tem uma formação vocacional já no ensino médio. Isso se dá pela própria estrutura do mercado de trabalho destes países – a educação no ensino médio acaba por ser um reflexo das economias dos países.

Sob esse aspecto, a visão sobre o Ensino Médio a ser proposto deveria passar pela visão da estrutura da economia e das oportunidades que o país irá gerar nos próximos anos. Enquanto 4 a cada 10 jovens não concluir a educação básica, será impossível gerar uma sociedade mais igual. Em um contexto profundamente marcado por desigualdades de oportunidades, ter acesso a uma boa educação profissional e ao Ensino Superior tem enorme efeito sobre a renda dos indivíduos e sobre a capacidade de mobilidade social.

A Reforma do Ensino Médio deve ser realizada de maneira a aproximar os estudantes das escolas e diminuir a evasão escolar. Fica a questão de como garantir uma maior motivação dos alunos. Diante desse quadro, a flexibilização surge como uma possibilidade de aumentar a autonomia dos jovens, mas dela surge outra questão para a qual também devemos estar atentos, que é: como flexibilizar e garantir a diversidade sem aumentar as desigualdades? Por isso é importante não pensar na reforma do Ensino Médio de forma independente, mas dentro do contexto do país. A Educação é o espelho do que o país quer ser.

Referências:

[1] Censo escolar 2015 – https://goo.gl/2th1wh

[2]“Nossa Escola em (Re)construção” http://porvir.org/nossaescola/