* Por Gabriela Thomazinho e Marília Barros

 

O Brasil convive com o mito de ser o país da miscigenação e da democracia racial desde 1933 – data da publicação de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Mas o otimismo do sincretismo cultural e da ausência de discriminação racial há muito são contestados por movimentos sociais que tratam da questão do negro na sociedade e, cada vez mais, são questionados por estudos que apontam diferentes situações em que o negro recebe um tratamento negativamente diferenciado. Aqui, pretendemos discutir pesquisas que olham para a discriminação racial dentro de escolas brasileiras – principalmente por parte de professores – e os efeitos sobre a perpetuação da desigualdade racial.

A desigualdade de oportunidades educacionais para pessoas de diferentes raças começa na mais tenra idade e prossegue até o Ensino Superior. Dados do Observatório do PNE mostram que apenas 12% da população negra e parda de 18 a 24 anos estava matriculada no Ensino Superior em 2015, enquanto que essa taxa era o dobro – 25% – para a população branca da mesma faixa etária. Mas o que acontece dentro da caixa-preta das escolas de Educação Básica que pode levar a essa extrema desigualdade no acesso ao Ensino Superior? Hoje há estudos que denunciam comportamentos discriminatórios e racistas de professores e apontam alguns dos seus impactos no desenvolvimento subjetivo e acadêmico de alunos negros.

É o caso do estudo realizado pelos pesquisadores de Economia da USP Fernando Botelho, Ricardo Madeira e Marcos Rangel. Para verificar se há discriminação racial por parte dos professores no momento de atribuição das notas dos alunos, os pesquisadores compararam a avaliação realizada pelo professor a alunos paulistas negros e brancos com mesma proficiência no SARESP, prova em larga escala realizada pelo governo estadual paulista.

Ao analisar as chances de um aluno passar do 9º ano para o Ensino Médio e de ter uma nota acima da média da classe, os autores observam que ambas as probabilidades são menores para alunos negros, mesmo com o controle dos dados pela proficiência e por outras características socioeconômicas e comportamentais dos alunos. Nas palavras dos autores:

“Estudantes brancos têm 4% menos chances de serem considerados alunos fracos (que não atingiram a nota mínima) do que colegas negros com desempenhos e comportamentos equivalentes. Os primeiros também têm 5% de chances de receberem notas mais altas do que a média de suas salas.” (p. 25 e 26, tradução nossa)

Um resultado interessante da pesquisa é que os professores com maior conhecimento sobre os alunos tendiam a discriminar menos. Os autores chegam a essa conclusão ao analisar as avaliações realizadas por professores que já deram aula para os mesmos alunos em anos anteriores: nesses casos, a disparidade de resultados desaparece. No vídeo produzido pelo Conselho de Classe, Ricardo Madeira discute os principais resultados dessa pesquisa.

As implicações dessa discriminação por parte dos professores sobre as decisões dos alunos em sua trajetória escolar podem ser fortes. Um aluno com notas mais baixas ou repetente tem maiores chances de evadir da escola. Esse mecanismo pode agravar a desigualdade de escolaridade entre brancos e negros.

Algumas pesquisas qualitativas buscam entrar na caixa-preta da escola para entender como essa discriminação racial se dá no cotidiano. O artigo de Marília Carvalho busca entender quais os processos cotidianos que levam meninos negros a terem um pior desempenho escolar. A partir de um estudo de caso em uma escola da cidade de São Paulo buscou-se observar as diferenças entre as classificações raciais de alunos de 1ª a 4ª série feitas por eles mesmos e as feitas pelas professoras (que não sabiam qual era a categorização feita pelos próprios alunos). A ideia da pesquisadora foi analisar os casos em que havia uma heteroatribuição e como ela relacionava-se às características dos alunos, como desempenho escolar, rendimento familiar e comportamentos das crianças.

O principal achado foi que os professores tendem a “clarear” alunos com bom desempenho escolar que se consideram negros:

“[…] a raça atribuída pelas professoras correspondia a diferenças significativas na composição do grupo de reforço: enquanto percebiam 28% de todas as crianças da escola como negras (pretas ou pardas), no reforço essa proporção era de 38%.

[…] Podemos observar que, segundo a autoclassificação, alunos negros e brancos estavam representados no grupo indicado para o reforço em proporção quase equivalente a seu total na escola.” (p. 86 e 87)

Portanto, no ato de atribuir uma raça/cor aos seus alunos, as professoras usavam como referência não só características fenotípicas, mas também seus resultados escolares. Segundo Marília Carvalho, esse fato pode ser derivado de dois pontos complementares. O primeiro é que as professoras tendem a clarear alunos de bom desempenho, e o segundo é que elas podem estar avaliando com maior rigor as crianças consideradas por elas como negras.

Fabiana de Oliveira e Anete Abramowicz revelam que as práticas discriminatórias por parte dos docentes estão presentes desde a Educação Infantil. A pesquisa realizada em uma creche mostra que as professoras têm atitudes de “paparicação” em relação a alguns de seus alunos, prática da qual os alunos negros estavam excluídos. Isso se revela em atitudes como pegar a criança no colo para que ela pare de chorar, elogiar, beijar e abraçar as crianças – práticas muito mais comuns com as crianças brancas do que com as negras. Do outro lado, observaram-se atitudes de rejeição ao contato físico com as crianças negras e a estereotipação de alguns meninos negros como travessos. O estudo de Vilma Pinho também revela os processos de estigmatização e discriminação contra alunos negros, neste caso por professores de Educação Física do Ensino Fundamental.

A naturalização do tratamento diferenciado para crianças brancas e negras faz com que professoras não percebam a dimensão racial nas relações dentro da sala. Segundo Eliane Cavalleiro, apesar de as professoras indicarem que não há atitudes e falas racistas em sua sala de aula, as próprias crianças negras relatam serem excluídas de brincadeiras por conta de sua cor.

A falta de um olhar específico para essa questão, atrelada à ideia de que o preconceito e o racismo  estariam “lá fora”, mascara uma realidade latente em salas de aula de todas as idades. Assim como em outras situações de negação de uma presença incômoda, professoras acabam juntando argumentos para justificar a ausência do debate racial em suas aulas. Entre eles estão: o tema seria cansativo; crianças pequenas não “percebem” as diferenças étnicas, ou não se importam; a escola é um espaço de convivência igualitária; racismo é uma atitude que as crianças aprendem em casa.

É necessário que as professoras tenham contato com saberes específicos relacionados à questão racial para que questionem sua práticas cotidianas. Essa visão também é apontada por Ricardo Madeira, que aponta que possivelmente, caso professores tivessem consciência de que tendem a atribuir notas piores a alunos negros, essa prática poderia ser reduzida.

Não há nos cursos de Pedagogia a obrigatoriedade de uma discussão formativa específica sobre essas questões, o que contribui para a manutenção e reprodução de relações preconceituosas. Marcos legais como a lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de aspectos culturais e históricos dos povos indígenas, africanos e afro-brasileiros, são considerados como importantes avanços na inclusão curricular de narrativas até então praticamente silenciadas. Porém, muitas vezes a abordagem dos assuntos étnicos se restringe a datas ou comemorações específicas, ficando isolados dos tradicionais conteúdos curriculares.

A questão racial deve ser debatida e estar presente na formação dos profissionais educadores, pois negá-la é ignorar a discriminação racial sofrida cotidianamente por estudantes negros. A expectativa que o professor têm sobre o aluno tem fortes repercussões sobre a perspectiva que o estudante tem sobre seu futuro. Um aluno que é comumente repreendido e avaliado negativamente por seus professores tende a criar expectativas sobre seu futuro educacional menos ambiciosas do que um aluno que é constantemente elogiado.

A exclusão racial presente na escola brasileira é um grave entrave à democratização da educação e à conquista da igualdade na sociedade. Os diversos fatores relacionados a essa exclusão devem ser analisados e discutidos cuidadosamente, a fim de apontar ações que combatam a discriminação e reduzam a desigualdade.