Por Rafael Pontuschka*

Fonte: Cena do filme “O Começo da Vida”.

“É lá o inicio de tudo
o dó ré mi fá,
de lá mistérios do mundo:
viver” – A Família, Zé Renato.

“Não tenho tempo pra esperar a hora
Tem que ser aqui tem que ser agora
Agora não, já!” – Eu Sou Um Bebezinho, Palavra Cantada.

A primeira infância, período que abrange os primeiros seis anos completos de vida da criança, é uma etapa crucial no desenvolvimento do ser humano. Neste período, estímulos adequados influenciam a arquitetura do cérebro, podendo contribuir para sua maior eficiência, enquanto estímulos inadequados ou a falta de estímulos podem provocar efeitos negativos no desenvolvimento cerebral. Atrasos no desenvolvimento infantil nessa época são difíceis e custosos de serem revertidos no futuro.

As pesquisas em neurociência também apontam que os primeiros mil dias de vida, período chamado de primeiríssima infância, são especialmente importantes. Nesta etapa, a plasticidade cerebral é maior, pois grande parte das conexões e neurônios está se formando e ainda não foi revestida pela camada de mielina, a qual afeta a velocidade e a eficiência da transmissão de mensagens. O rápido desenvolvimento das sinapses na primeira infância formam as bases cognitivas e emocionais para a vida. Vias sensoriais como a visão e audição são as primeiras a se desenvolverem, seguidas pela linguagem e por funções cognitivas mais especializadas, como mostra a figura abaixo.

Fonte: C.A. Nelson em “From neurons to neighborhoods” (2000).

Além das pesquisas em neurociência, as pesquisas em ciências sociais também apresentaram evidências da relevância e da necessidade de investimentos no desenvolvimento na primeira infância. Este texto abordará algumas das principais pesquisas da área de economia sobre programas de estímulo ao desenvolvimento na primeira infância, seus resultados e sua importância para a propagação e implementação destes programas no Brasil e no mundo.

James Heckman, ganhador do Nobel de Economia em 2000, Susanne Schennach e o brasileiro Flávio Cunha formalizaram as equações que descrevem o desenvolvimento de habilidades cognitivas, como raciocínio lógico e capacidade de resolver problemas, e não-cognitivas (ou socioemocionais), como autonomia, motivação, persistência e autocontrole.

Segundo seus resultados, a formação de habilidades apresenta duas características-chave: a auto-produtividade e a complementaridade dinâmica. Ou seja, as habilidades desenvolvidas em uma fase contribuem no desenvolvimento de habilidades em fases posteriores e investimentos em idades mais novas aumentam a produtividade dos investimentos futuros. Outro resultado encontrado é que as habilidades não-cognitivas têm uma resposta mais uniforme ao longo da infância e adolescência, enquanto as habilidades cognitivas são mais influenciadas pelos investimentos realizados em fases mais iniciais da vida de uma criança.

Desta forma, é mais produtivo investir em crianças em desvantagem na primeira infância do que tentar remediar a desvantagem ao longo da vida futura. E a estratégia de recuperação mais exitosa para adolescentes em condição desfavorável seria focar em habilidades não-cognitivas.

Segundo os pesquisadores, os indivíduos mais jovens apresentam maiores retornos do investimento em capital humano do que aqueles em idades mais avançadas, ou seja, a taxa de retorno é maior nos primeiros anos de vida e decresce com o passar da idade, conforme mostra a figura abaixo.

Fonte: J. J. Heckman em “Schools, Skills and Synapses” (2008).

Apesar de a primeira infância ser um período crítico para o desenvolvimento cognitivo, social e psicológico, infelizmente, em países em desenvolvimento, muitas crianças abaixo dos seis anos não alcançam seu potencial devido à pobreza associada à subnutrição e falta de estímulos.

Embora ainda sejam poucas, nas últimas décadas foram publicadas algumas evidências de que o investimento no desenvolvimento na primeira infância também causa impactos de longo prazo em variáveis como renda e desigualdade.

Um dos primeiros e mais citados programas de desenvolvimento da primeira infância avaliados pelo método de seleção aleatória foi o Programa da Pré-escola Perry. Na década de 1960, foi realizado um sorteio para preencher as 58 vagas disponíveis da pré-escola Perry, em Ypsilanti, Michigan, dentre um grupo de 123 crianças afro-americanas de 3 a 4 anos de famílias de baixa renda. Durante a semana as crianças passavam 2,5 horas por dia na pré-escola e também recebiam em casa visitas semanais de 90 minutos dos professores com direcionamento para o desenvolvimento socioemocional e cognitivo.

Estudos liderados por James Heckman acompanharam estas crianças durante diferentes fases da vida: aos 15, 19, 27 e 40 anos de idade. Os resultados obtidos mostram que os participantes apresentaram maior probabilidade de atingirem melhores notas, de se formarem em idade adequada, de terem casa própria, de não necessitarem de assistência social, de obterem maiores rendimentos e também menor probabilidade de cometerem crimes.

Os 57 participantes do programa americano Abecedarian, escolhidos por sorteio, também foram acompanhados por muitos anos ao longo de sua vida, após os cinco anos de duração do programa, entre 1972 e 1977. Além das 40 horas semanais na escola infantil, o programa também incluiu cuidados de saúde e componentes nutricionais. Os resultados mostram que os participantes do Abecedarian atingiram, em média, 1,2 anos a mais de educação em relação ao grupo de controle, além de um aumento permanente no QI e também maior probabilidade no futuro de se formarem no ensino superior e serem empregados.

O caso da Jamaica

Em 1986, teve início o primeiro programa de visitação domiciliar de estimulação na primeira infância em um país em desenvolvimento, em regiões de baixa renda em Kingston, na Jamaica, implementado pela médica britânica Sally Grantham-McGregor.

Foto das agentes comunitárias de saúde da Jamaica preparando-se para suas visitas domiciliares semanais
Fonte: J-PAL, 2017.

Com duração de dois anos, este programa foi composto por intervenções de estímulo psicossocial e fornecimento de suplementos nutricionais por meio de visitas domiciliares semanais de uma hora cada, realizadas por agentes de saúde comunitárias formadas que instruíam e incentivavam as mães a brincar e interagir com seus filhos. As vagas existentes foram distribuídas para um grupo de 94 crianças, escolhidas aleatoriamente dentre 127 crianças com nanismo de 9 a 24 meses de idade.

Para medir os impactos de longo prazo do programa, os participantes foram entrevistados vinte anos depois, em 2007 e 2008, quando eles estavam com 22 anos. Foram coletados dados de educação e trabalho para identificar como o programa impactou estas variáveis.

Foi encontrado impacto de 25% sobre os rendimentos dos participantes do programa. Além disso, as crianças com nanismo atingiram os mesmos níveis de rendimento que crianças sem nanismo. As crianças que receberam o estímulo alcançaram 0,6 mais anos de escolaridade ou 5,6% mais de escolaridade em relação às crianças não participantes, e também aproximadamente três vezes mais chance de ter alguma educação no nível superior. A intervenção nutricional, medida à parte, não apresentou impacto em resultados de longo prazo. Isto pode ter ocorrido devido à falha em desencorajar a partilha dos suplementos nutricionais com outros membros da família.

Foram examinados mecanismos de transmissão pelos quais as crianças com nanismo alcançaram os rendimentos de seus pares. Os resultados indicam que as crianças que receberam estímulos psicossociais se beneficiaram de mais investimentos dos pais e maior desenvolvimento de habilidades cognitivas e psicossociais, maior frequência escolar e maior imigração para economias mais desenvolvidas com acesso a melhores escolas e trabalhos.

O caso da Colômbia

Na Colômbia, em 2010 e 2011, um programa de visitação domiciliar para desenvolvimento infantil foi implementado como uma das condicionalidades do programa de transferência de renda Familias en Acción. O protocolo de visitação foi adaptado a partir do protocolo jamaicano, elaborado por Grantham-McGregor, para ser culturalmente apropriado à realidade colombiana.

Brinquedos utilizados na Colômbia, construídos com materiais muito acessíveis.
Fonte: Attanasio 2015.

Para verificar os efeitos do programa e aprender sobre suas causas, 96 municípios foram divididos aleatoriamente em quatro possíveis grupos: no primeiro seria implementado apenas o componente de estímulo psicossocial; no segundo, apenas a distribuição de micronutrientes para serem adicionados ao alimento das crianças (vitaminas e minerais como ferro e zinco); no terceiro grupo foram implementados ambos os componentes; enquanto o quarto grupo foi escolhido como grupo de controle. Ao todo, participaram desta seleção 1.420 crianças de 12 a 24 meses em condições de pobreza.

Para cada município foram escolhidas três líderes comunitárias, as quais receberam formação para realizar as visitações com o objetivo de demonstrar aos cuidadores das crianças como realizar brincadeiras de baixo custo ou com brinquedos feitos em casa, além de como praticar o ensino da linguagem com livros e músicas. As visitadoras interagiam com mães e crianças, dando feedbacks positivos às mães ao longo das sessões. Para estimular o engajamento, os visitadores deixavam brinquedos e livros, trocados semanalmente por novos.

Após 18 meses de intervenção, segundo as análises de Orazio Attanasio e equipe, as crianças do grupo de tratamento pontuaram, em média, 0,26 desvio-padrão a mais que o grupo de comparação em relação a habilidades cognitivas e 0,22 desvio-padrão a mais em linguagem receptiva, ambos mensurados na escala Baley-III, internacionalmente reconhecida para mensuração do desenvolvimento infantil. Não foram encontrados efeitos em outras dimensões como linguagem expressiva e capacidade motora fina.

Foi encontrado também impacto causal do programa no aumento de 36% do tempo dedicado pelos cuidadores a interações voltadas ao desenvolvimento da criança, e aumento de 25% na disponibilidade de recursos adequados à criança, como brinquedos e outros materiais.

Em relação aos mecanismos de transmissão dos impactos do programa, os resultados apontam que os efeitos em habilidades não-cognitivas ocorreram por meio do maior investimento de tempo dos pais, enquanto que os efeitos em habilidades cognitivas se deram por meio do maior investimento em materiais.

Também foram encontradas evidências de auto-produtividade – habilidades não-cognitivas contribuíram para o aumento de habilidades não-cognitivas no futuro – e também de produtividade cruzada – habilidades cognitivas contribuíram para o desenvolvimento de habilidades não-cognitivas no futuro. Porém, o efeito encontrado em sentido oposto – habilidades não-cognitivas contribuindo para o desenvolvimento de habilidades cognitivas no futuro – não é estatisticamente significativo.

Os resultados encontrados na Colômbia indicam que os programas de estímulo infantil podem ser implementados em escala com relativamente baixo custo. Ao associar-se a um programa existente de transferência condicionada de renda, a intervenção beneficiou-se de uma capacidade administrativa estabelecida, de uma população alvo pré-identificada e de uma rede comunitária pré-mobilizada.

Além destes casos, há outros países que implementaram ou implementam programas de visitação domiciliar para desenvolvimento na primeira infância, como Bangladesh, Chile, Cuba, Peru e outros; muitos dos quais também estão realizando também avaliação de impacto destes programas.

É mais produtivo investir em crianças em desvantagem na primeira infância do que tentar remediar a desvantagem ao longo da vida futura.

O acúmulo de evidências de resultados positivos contribui para a propagação da agenda do desenvolvimento da primeira infância nas políticas públicas. Embora haja muitas evidências de impactos positivos destes programas, a escala limitada e as particularidades de cada caso põe em dúvida a possibilidade de replicar estes resultados em programas de larga escala e em países em desenvolvimento.

No Brasil

No Brasil, há algumas regiões que já implementam programas semelhantes. O mais antigo é do Rio Grande do Sul, onde há quinze anos começou o Primeira Infância Melhor (PIM), que tem como referência a metodologia do programa cubano, chamado Educa a tu hijo. Há também as iniciativas do programa Mãe Coruja Pernambucana, do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Infantil (Padin), no Ceará, do Família que Acolhe, de Boa Vista (RR), entre outros.

No final de 2016, foi lançado o programa Criança Feliz, que será implementado de forma intersetorial, com cooperação de estados e municípios, contando com transferência de recursos da União. O público alvo são gestantes, crianças de até 36 meses participantes do Bolsa Família e de até 72 meses participantes do Benefício de Progressão Continuada (BPC). Planeja-se que em 2018 o Criança Feliz alcance 4 milhões de crianças em mais de 3 mil municípios.

O programa foi fruto de experiências de programas implementados no Brasil e em outros países que apresentaram evidências de resultados. Graças aos aprendizados e resultados obtidos por meio de avaliações de impacto, estes programas mostraram sua importância e puderam ser disseminados e aprimorados. Mas será a primeira vez no mundo que um programa deste tipo ganhará tais dimensões.

O desafio da grande escala em um país tão heterogêneo como o Brasil justifica mais uma vez a necessidade de realizar estudos e avaliações de impacto rigorosas. Pois possibilitaria aprender muito mais sobre o tema, assim como aprimorar a política pública e também disseminar conhecimento, para que outros países possam fazer o mesmo e conseguir, desta forma, desenvolver com qualidade a primeira infância e toda a vida de bilhões de crianças, principalmente das mais desfavorecidas.

 

Rafael Pontuschka é mestre em Economia Aplicada pela Esalq-USP, bacharel em Ciências Econômicas pela Unicamp e trabalha como Coordenador-Geral de Avaliação na Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (Sagi) do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA).

 

Referências

Attanasio, Orazio, et al. Estimating the production function for human capital: Results from a randomized control trial in Colombia. No. w20965. National Bureau of Economic Research, 2015.

Center on the Developing Child (2007). The Science of Early Childhood Development (InBrief). Retrieved from www.developingchild.harvard.edu.

Cunha, Flavio, Heckman, James J., Schennach, Susanne M. “Estimating the technology of cognitive and noncognitive skill formation.” Econometrica 78.3 (2010): 883-931.

Gertler, Paul, et al. “Labor market returns to an early childhood stimulation intervention in Jamaica.” Science 344.6187 (2014): 998-1001.

Heckman, James J. “Schools, skills, and synapses.” Economic inquiry 46.3 (2008): 289-324.

Knudsen, Eric I. “Sensitive periods in the development of the brain and behavior.” Journal of cognitive neuroscience 16.8 (2004): 1412-1425.

Nelson, Charles A. “Neural plasticity and human development: The role of early experience in sculpting memory systems.” Developmental Science 3.2 (2000): 115-136.

O COMEÇO DA VIDA. Direção: Estela Renner; Produção: Maria Farinha Filmes. Brasil, 2016. Disponível em: <http://ocomecodavida.com.br/filme-completo/>. Acesso em: 05 fev. 2017.

Phillips, Deborah A., and Jack P. Shonkoff, eds. From neurons to neighborhoods: The science of early childhood development. National Academies Press, 2000.