No final de Setembro, em meio à confusão de interpretações e divergentes informações a respeito Medida Provisória da Reforma do Ensino Médio, um amigo e especialista em Educação, Ricardo Falzetta, lembrou-me do seguinte: a melhor análise crítica que se pode fazer é aquela que não só aponta o dedo para as fragilidades, mas que também é propositiva ao sugerir horizontes de transformação.

Muitas instituições e especialistas se concentraram, de forma qualificada, em destacar os problemas da Medida Provisória. Consideraram que ela não constrói o diálogo com as entidades educacionais e, principalmente, com a comunidade escolar (alunos, famílias, professores, funcionários e diretores); que é uma Medida sem amparo em estudos de viabilidade e de implementação; uma Medida que apresenta diversas possibilidades de interpretação, levando a uma insegurança institucional que pode causar prejuízos ao exercício da docência e ao planejamento da gestão escolar e das redes – e consequentemente à evolução dos jovens no processo de ensino-aprendizagem.

Ao fim e ao cabo, muitos viram na Medida uma semelhança, em termos dos seus pontos problemáticos, à proposta de reorganização escolar da rede estadual paulista. Em seus contornos, apontaram que a iniciativa representa uma prática não desejável para as políticas públicas do país: pouco diálogo, pouca solidez institucional e sem estudos técnicos públicos que a embasem e a a validem.

Na maioria dos casos, essas mesmas instituições e especialistas manifestaram que, apesar dos problemas, a proposta de reforma do Ensino Médio contém idéias que vão na direção correta. Responde aos anseios dos jovens por trilhas diferenciadas e aprofundamento eletivo, reforça a importância da Educação integral e sugere caminhos para que o Brasil possa superar a estagnação da qualidade e os altos índices de abandono no Ensino Médio.

Nesse cenário, vale recordar dois dados estatísticos: somente 7,3% dos estudantes do 3º ano do Ensino Médio brasileiro tinham o aprendizado adequado em Matemática em 2015 – percentual que teve queda em relação a 2013; e cerca de 6,8% dos estudantes do Ensino Médio abandonaram a escola ao longo do ano letivo em 2015. É, sem dúvida, um quadro que evoca o imperativo de se redesenhar o Ensino Médio.

Os principais posicionamentos foram compilados pelo economista Fernando Rufino e estão disponíveis aqui:

https://docs.google.com/document/d/1O__nA19XY27-vDKudqVJYk2OzWtuaiEvZ1WiVVjxgZQ/edit?usp=sharing

Ainda que muitas ideias da proposta apontem na direção correta, essa é a reforma que desejamos para a etapa final de nossa Educação Básica? Será que  atende ao propósito de uma Educação que potencialize o jovem de modo a transformá-lo em um cidadão protagonista, por meio dos conhecimentos produzidos pelas gerações atuais e anteriores e da análise crítica sobre a realidade vivida? É suficientemente bem desenhada para que não aprofunde as desigualdades de ensino no nosso país?

Nesse ensaio, apresenta-se a reflexão sobre um caminho diferente a ser seguido. Não é uma proposta que possa, de forma alguma, ser pensada como uma “bala de prata” – o que seria inadequado. Esta é uma reflexão acerca de um percurso de políticas que poderia nos conduzir, democraticamente e com maior segurança, para uma reforma de qualidade e acordada pela nação brasileira.

Como toda proposta de política pública, um percurso como este deveria passar por rigorosos estudos de implementação para se concretizar, sendo levado ao debate para avaliação crítica dos efeitos previstos. Gestores públicos sabem que as ideias de políticas mudam muito durante a implementação. Portanto, prever e debater como elas ocorrerão, seus riscos e as saídas para esses riscos, significa maior qualidade da gestão pública.

Como diz o Professor Fernando Abrucio, da FGV, “uma boa reforma é aquela que já diz como será implementada”. Ou, como afirmou o Secretário de Educação do Ceará a respeito da própria reforma do Ensino Médio, “se não souber como farei, eu não faço”.

Base Nacional Curricular Comum. Essa estrada ensaiada tem um marco zero: a Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Trata-se da definição dos direitos de aprendizagem de todos os jovens brasileiros, do conjunto de conhecimentos, conteúdos e habilidades que desejamos que cada um tenha oportunidade de aprender, para que o Brasil possa alcançar um nível elevado de desenvolvimento nacional, com justiça e equidade. Sem a Base, não teremos um norte da qualidade da Educação que precisamos.

Quando o Governo posterga a definição BNCC do Ensino Médio e adianta uma reforma da etapa que limita o tamanho da BNCC (deverá ser cumprida em no máximo 1800 horas, de acordo com o texto atual da MP), comete-se uma inversão grave. O direito à aprendizagem perde a concepção de direito como finalidade absoluta – o que queremos garantir – e passa a ser apenas aquilo que dá para fazer. Não é mais a Educação necessária ao alcance de um projeto de país e dos projetos de vida dos cidadãos, mas a Educação que cabe em um modelo pré-determinado sem a participação da população. A BNCC corre o risco de ficar empobrecida por esse limite.

Ainda que muitas ideias da proposta apontem na direção correta, essa é a reforma que desejamos para a etapa final de nossa Educação Básica?

É como se, no combate à fome, o Governo primeiro definisse, sozinho, o tamanho do prato e os talheres que serão distribuídos, para só depois determinar a quantidade e a variedade de alimentos que serão distribuídos – de acordo com o que cabe no prato e que se pode comer com os talheres, e não com o que deve ser oferecido para suprir as necessidades básicas dos cidadãos.

Vale fazer aqui um parêntese: o processo de construção da BNCC tem sido exemplar ao instituir mecanismos de consulta pública e elaboração coletiva, com rodadas públicas de aperfeiçoamento das proposições, inclusive com a participação ampla de professores e estudantes. São práticas necessárias ao bom desenho de uma política pública sistêmica, mas que infelizmente não ocorreram no caso da edição da Medida Provisória que reforma o Ensino Médio.

Currículos de formação de professores. A pedra angular de qualquer política educacional consiste nos professores, sua qualidade e a qualidade das condições como exercem o seu magistério. Referenciando-se nos conteúdos e habilidades expressos na BNCC, é necessário redefinir os currículos dos cursos superiores de formação de professores, garantindo que os docentes tenham condições (incluindo didática) de conduzir os processos de aprendizagem dos estudantes. A revisão deve ser acompanhada de uma política de qualificação do nível inicial dos docentes (7% dos professores de Ensino Médio no Brasil não possuíam formação superior em 2015) e de oferecimento de atualização e complementação formativa para os professores em exercício, em consonância com as metas 15 e 16 do Plano Nacional de Educação. A melhoria da formação do magistério pode também estar atrelada ao desenvolvimento de uma avaliação nacional docente de certificação para ingresso na carreira.

É substancial lembrar, nesse ponto, que qualquer alteração na estrutura de disciplinas do Ensino Médio deverá levar a uma necessidade de realocação de funções docentes e contratação de pessoal – o que precisa ser estimado quantitativamente para aprimorar a implementação. O oferecimento de trilhas diferenciadas, como atualmente é proposto na reforma do Ensino Médio, irá requerer professores especializados, habilitados para conduzir aprofundamentos nas diferentes áreas do conhecimento.

A pedra angular de qualquer política educacional consiste nos professores, sua qualidade e a qualidade das condições como exercem o seu magistério.

Hoje, no entanto, há uma considerável carência de professores especializados em algumas áreas. Por exemplo, somente 27% dos docentes de Física têm formação específica na área. Em Filosofia e Sociologia, 8 estados brasileiros têm menos de 10% dos docentes que atuam nessas disciplinas com formação específica. O cenário traz um risco de que as disciplinas com maiores déficits de professores sejam oferecidas por Educação à Distância (EaD), com possíveis efeitos negativos na qualidade do ensino.

Identificação de situações críticas de oferta de ensino. Pensar uma política nacional de qualificação inicial docente traz outra importante preocupação:  o Brasil precisa, urgentemente, de um quadro completo da situação da oferta de ensino em suas escolas de nível médio, um mapa que possibilite saber exatamente os graus de desigualdade do país. O sistema de dados da Educação Básica brasileira é um dos mais abrangentes e robustos do mundo. Porém ainda falta instrumentos de medida que identifiquem a qualidade dos insumos educacionais.

Censo Escolar permite saber se uma escola possui laboratório de ciências ou biblioteca, mas não é capaz de identificar a qualidade desses espaços – nem mesmo se os espaços estão funcionando e abertos aos alunos. Tampouco sabemos qual o nível de formação (em termos de qualidade) dos professores e gestores escolares. Deveríamos ter a informação de qual é a avaliação do curso e da Instituição de Ensino Superior onde se formaram, assim como a qualidade das formações continuadas realizadas.

Precisamos identificar exatamente quais são as defasagens locais em insumos educacionais – infraestrutura, número e formação dos professores, material didático – para agir cirurgicamente na garantia de padrões mínimos adequados de ensino, a partir do que sabemos ser necessário haver no ambiente escolar para efetivar a Base Nacional Comum.

Isso poderia ser feito por um sistema ampliado de avaliação que já vinha sendo preparado pelo Inep/MEC, o SINAEB, mas cuja estruturação foi interrompida pela atual gestão do Ministério da Educação. Também seria interessante apoiar-se em novos canais de escuta das necessidades das comunidades escolares, de fácil acesso e uso para que estudantes, pais, professores, funcionários e gestores possam reportar ao Ministério da Educação e secretarias estaduais a falta de recursos para insumos ou o mau uso deles.

Função supletiva da União. O Governo Federal, de acordo com sua função normativa, redistributiva e supletiva (artigo 8º da LDB), poderia então garantir recursos e apoio técnico de gestão para resolver as defasagens mapeadas nas redes estaduais e municipais. Tal ação é prevista em diversas estratégias do Plano Nacional de Educação, dentre elas a implementação e monitoramento da execução do Custo Aluno Qualidade inicial.

O ano de 2016, contudo, trouxe uma dificuldade para que a União possa aprofundar o investimento de recursos na Educação Básica, dadas as amarras da Emenda Constitucional nº 95/2016 (do teto de gastos federais, a qual tramitou como PEC 241 na Câmara Federal). O cenário é de risco para o desenvolvimento da Educação nacional, como mostra a análise elaborada pelo Todos Pela Educação. Nesse caso, a complementação da União ao Fundeb, a qual não entra no teto de gastos, pode ser um caminho para parte do apoio financeiro – embora com problemas de eficiência na aplicação de recursos.

Caminhos diversificados. A partir do norte indicado pela BNCC e considerando as defasagens de condições de ensino ainda não solucionadas, o Brasil poderá elaborar proposta de criação de caminhos diversificados do Ensino Médio para aprofundamento eletivo dos alunos. Há uma série de desenhos possíveis, incluindo o progressivo oferecimento de matérias eletivas ao longo do Ensino Médio e a Educação baseada em projetos. Essa reforma pode se basear nas já avançadas discussões entre especialistas da Educação e incluir também uma consulta ampla aos jovens e suas entidades representativas, observando potenciais efeitos em qualidade do ensino e na evasão escolar.

É imperativo que haja um verdadeiro canal de diálogo – e não somente de escuta – da comunidade escolar nesse processo. Não somente um canal aluno-governo, mas também aluno-escola e escola-governo. Dessa maneira, uma reforma do Ensino Médio poderá atender às demandas de estudantes, professores e gestores escolares, tornando a escola mais atrativa e qualificando as condições de trabalho.

É imperativo que haja um verdadeiro canal de diálogo – e não somente de escuta – da comunidade escolar nesse processo. Não somente um canal aluno-governo, mas também aluno-escola e escola-governo.

A reforma não necessariamente precisaria tramitar como nova Lei; muitos especialistas têm argumentado que a atual LDB (que a MP pretende alterar) já garante suficiente flexibilidade para o oferecimento de novos modelos de oferta. Dessa forma, a reforma pode ser constituída a partir de diretrizes do MEC e do Conselho Nacional de Educação, juntamente com programas de estímulo à adoção do novo Ensino Médio. As diretrizes deveriam observar também as recomendações de implementação, com base no quadro de qualidade da oferta educacional – evitando que o novo Ensino Médio aprofunde desigualdades educacionais.

Implementação da reforma. Estruturada a reforma, o Governo Federal deveria finalmente garantir recursos e apoio técnico para efetivação dessa proposta em todo o território nacional, atento para que os alunos tenham igualdade de oportunidades para suas escolhas de caminhos diversificados, minimizando os riscos de uma má implementação. Provavelmente, seria necessário programa específico de estímulo à ampliação da carga horária escolar em direção a uma Educação Integral, bem como a reformulação da matriz curricular do Enem para que essa avaliação reflita a nova estrutura do Ensino Médio.

Como se pode pensar, a redefinição dos currículos de formação docente, a identificação de situações críticas e a organização da ação supletiva da União poderiam e deveriam correr simultaneamente. Porém, todos dependem do estabelecimento do marco zero, da BNCC.  E, novamente, todos dependem de estudos técnicos de implementação, sem os quais provavelmente teremos políticas mal executadas, sem sucesso completo em atingir seus objetivos. Além disso, todos esses necessários avanços também dependem de amplo debate entre a sociedade brasileira, definindo consensos e pactos, garantindo um projeto comum de qualidade da Educação.

O atual Ministério da Educação, tomado por um sentido de urgência, acabou por adiantar a reforma postergando seus pilares. Abdicou da realização de estudos técnicos prévios de implementação e do amplo debate sobre seus resultados. Em resumo, atropelou os procedimentos democráticos que vinham sendo conduzidos no Congresso para apreciação do PL nº 6840, de 2013, arriscando estigmatizar uma necessária reforma do Ensino Médio. Transformar o nosso ensino para garantir a qualidade da Educação é urgente, mas não se pode arriscar a, mais uma vez, fazer mal feito. A questão central é: esse projeto poderá ser sustentado sem um pilar sólido?

Diante desse quadro, que processos poderiam ser conduzidos nesse momento pelo Governo, com o apoio da sociedade civil e da comunidade escolar? Antes de ações para implementação rápida do Novo Ensino Médio, o que pode gerar um perigoso engessamento e/ou mau uso dos recursos, o Ministério poderia:

  • concentrar esforços na edificação da BNCC do Ensino Médio;
  • retomar a  estruturação do SINAEB para medir as defasagens em insumos educacionais e as necessidades prementes de reforma na formação docente;
  • conduzir estudos técnicos para implementação das medidas necessárias;
  • desenhar programas e portarias para garantir recursos e apoio técnico para efetivação de um novo modelo de Ensino Médio (incluindo tempo integral).

Assim, com a preparação necessária para a definição de uma boa política, o Brasil poderá estruturar uma reforma educacional que dê nova identidade ao Ensino Médio, seguindo o papel dessa etapa na efetivação dos direitos de aprendizagem dos jovens. Fará a reforma sabendo exatamente onde o país – população, estudantes, pais, professores, funcionários e gestores – quer chegar. E mais, sabendo exatamente como chegar à Educação de qualidade para a atual e para as próximas gerações de jovens.