Por João Feitosa*

 

Todo ano centenas de milhares de jovens ralam a cuca de estudos e ansiedade para tentar uma vaga no aclamado Ensino Superior. Agora, em janeiro, muitos têm a felicidade de comemorar a passagem para essa próxima etapa do aprendizado; outros vão se lamentar e começar a pensar no vestibular do ano seguinte. Há também uma grande parcela de jovens que vai passar por essa época indiferente, sem sequer cogitar pleitear uma vaga nas universidades.

Quem vai para a faculdade?

O Ensino Superior brasileiro é elitizado. Isso não é novidade.

A tabela abaixo relaciona acesso ao ensino Superior e quintil de renda. Quintil de renda é a faixa econômica em que uma pessoa se encontra; se ela está no primeiro quintil, isso significa que ela está entre os 20% mais pobres da sociedade; se ela está no quinto, então ela está entre os 20% mais ricos. Os quintis intermediários representam faixas intermediárias.

Taxa de escolarização líquida do ensino superior
Renda 1991 2000 2010
1º quintil 0.5% 1.7% 13.5%
2º quintil 0.8% 3.4% 21.6%
3º quintil 1.9% 9.1% 41.2%
4º quintil 5.2% 24.8% 63.0%
5º quintil 15.2% 61.3% 83.5%

 

Como era de se esperar, o acesso ao Ensino Superior é maior conforme olhamos para estratos mais abastados da sociedade. Em 1991, 15,2% dos jovens cujas famílias pertencentes à quinta parte mais rica do Brasil estudavam nas universidades; entre os jovens do primeiro quintil, tal percentual era de 0.5%. Praticamente nenhum jovem pobre ia para a faculdade.

Na década de 1990 o acesso ao Ensino Superior foi estendido, ainda que principalmente para as classes mais abastadas. Os 20% mais pobres continuaram inexistentes nas faculdades. Foi somente na década seguinte que as classes mais pobres e intermediárias da sociedade entraram no vagão universitário, beneficiando-se da ampliação de vagas das universidades públicas e privadas, que tornaram-se alternativas mais palpáveis com o avanço de ações afirmativas e programas de inclusão como FIES e PROUNI.

Apesar dos notáveis avanços, a disparidade continua brutal: somente 1 em cada 10 jovens entre os 20% mais pobres acessa a Universidade, ao passo que na outra ponta são 8 em cada 10.

Os porquês disso não trazem muita surpresa. Famílias mais abastadas conseguem pagar por escolas melhores e ao mesmo tempo oferecer um ambiente mais próprio para o desenvolvimento intelectual de seus filhos ou filhas. Estas crianças têm acesso mais facilmente a livros e atividades extracurriculares, por exemplo.

Contudo, muitas dessas vantagens que o jovem “rico” acumula não são mérito seu. Elas se devem mais ao mérito dos pais (o que evidentemente é super válido). Claro que não basta nascer em uma família rica para entrar na faculdade; quem aspira uma vaga tem que estudar e se esforçar, e saber aproveitar as oportunidades que lhe são dadas. O ponto é que jovens de famílias menos abastadas têm menos oportunidades e por isso têm que se esforçar mais para chegar nos mesmos lugares. O esforço extra é certamente motivo de muita admiração, mas não anula o fato de que na corrida universitária uns saem em (grande) desvantagem, o que torna o processo pouco meritocrático.

Partindo desse diagnóstico, de que o acesso à Universidade é desigual, e que o processo de seleção não é justo, tomaram-se medidas para corrigir essas distorções. Em universidades públicas passou-se a adotar cotas sociais. Nos primórdios elas foram muito contestadas, porém há cada vez maior consenso em relação à necessidade da medida.

Por outro lado, cotas raciais ainda são alvo de grande polêmica e de discordâncias. Afinal, se a grande questão que determina as chances de (não) entrar na faculdade é a renda, por que vamos criar mecanismos específicos para negros, pardos ou indígenas? Se um menino branco e um negro estão dividindo a mesma sala precária de ensino público, as chances deles supostamente são as mesmas. Para justificar as cotas raciais, é importante fazer então a seguinte pergunta:

Além de renda, a cor de pele também afeta as chances de alguém entrar na faculdade?

Sabemos que as universidades dão uma amostra embranquecida da população. Como pode-se ver no gráfico abaixo, referente à 2014, o acesso ao Ensino Superior é muito mais difundido entre brancos.

Isso se explica, em parte, porque negros e pardos são em geral mais pobres que os brancos. Explicar isso sem remontar ao passado escravocrata do país é difícil, para não dizer impossível. A cor de pele é um fator que determinou como a renda ia se concentrar na sociedade, e ainda não superamos essa infeliz herança.

Mas vamos nos ater aos números do presente.

Olhando este gráfico, em que se dispõe o acesso ao Ensino Superior segundo quintil de renda e cor-de-pele, salta aos olhos que negros têm acesso consideravelmente menor que brancos à universidade para qualquer faixa de renda que olharmos.

Isso poderia ocorrer porque, mesmo dentro das faixas de renda, os negros são mais pobres que os brancos. Na verdade, é extremamente plausível que dentre os 20% mais ricos, os negros estejam mais concentrados no piso da faixa (o que também deve ser verdade para as outras faixas).

No entanto, tal tese não basta para justificar o descalabro dos dados.

Repare que negros não perdem em acesso à universidade para os brancos apenas na sua faixa de renda: eles também perdem para brancos consideravelmente mais pobres. A chance de um negro que está no quintil intermediário entrar na faculdade é igual a de um branco entre os 20% mais pobres. Um negro do segundo quintil tem quase metade das chances de um branco do quintil abaixo (mais pobre).

Ademais, no gráfico também fica perceptível que quanto mais clara a pele, maiores as chances. Brancos têm maiores chances de acessar o Ensino Superior que pardos, que por sua vez têm chances maiores que negros.

É muito difícil explicar por que pessoas de pele mais escura têm maior dificuldade que seus pares de renda brancos. O racismo, por mais que muitas vezes seja explicito, se dá de forma velada e sutil. Entretanto, podemos supor algumas formas comuns que reforçam a branquitude universitária. Por exemplo, a ausência de acadêmicos negros torna menos palpável para os jovens a possibilidade de pertencerem a esse contexto e, o que leva à perpetuação de uma maioria branca. Ademais, será que esses jovens são tão estimulados a seguir seus estudos quanto os brancos?

As cotas raciais são plenamente justificáveis partindo do nosso passado escravocrata, longe de ser superado. Esse é o argumento da reparação histórica. O que os números sugerem, ademais, é que, isolando-se o fator renda, a cor de pele mais escura reduz as oportunidades estatisticamente. Isso abre margem para um segundo forte argumento, que podemos chamar de “reparação de mérito”. Juntos, esses argumentos são mais do que suficientes para que adotemos políticas de inclusão racial nas Universidades.

 

* João Feitosa é estudante de Economia na Universidade de São Paulo. Estagiou no site de economia “Por quê? Economês em bom português”, onde se empenhou na difusão do debate econômico em termos mais acessíveis. Faz parte do Projeto Ipê, onde ensina matemática para jovens do 9º ano de colégios públicos.