Texto da Colunista Haline Floriano para o Blog Econoeduc

 

Há um ano eu encerrava um ciclo: me formava pela Universidade de São Paulo. Mais que isso, eu entendia o significado e a potência de esperançar. Por isso, hoje, inicio a minha participação aqui no blog unindo a minha vivência com a necessidade de investirmos e lutarmos por uma educação de qualidade, que seja equânime, diversa, crítica e inclusiva. 

Em meio à crise do novo coronavírus, muitas coisas foram escancaradas, principalmente a desigualdade. Ela atinge todos os níveis da sociedade, e a educação é um deles. Ao contrário do que chegamos a ouvir do ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, políticas públicas educacionais e iniciativas como o ENEM devem, sim, caminhar para a redução das injustiças e desigualdades sociais. Pois, sem a educação, estaremos mais distantes de uma sociedade com oportunidades para todos e todas. E eu vivi isso na pele. 

Não quero aqui sustentar qualquer discurso meritocrático que exista. Meu objetivo é usar do meu relato pessoal para colocar em debate a necessidade do investimento e da construção de uma educação pública que acolha a todos. Nos últimos anos, avançamos no acesso à educação, mas os desafios não pararam por aí. Diante de tantas desigualdades, é por meio de políticas públicas que a população mais carente pode ingressar no ensino superior. 

Eu tive o privilégio de contar com a ajuda de muitas pessoas durante a minha trajetória educacional. Nasci e cresci na roça; filha do seu Mário, agricultor, e da dona Benedita, empregada doméstica; ambos estudaram somente até a quarta série do ensino fundamental. Os dois sempre souberam bem que a única forma de mudar a realidade que estava condicionada a mim seria pela educação. Além do apoio e do suporte deles, estudando integralmente na escola pública rural, contei com a doação de livros, isenção nos vestibulares, professores que pagaram as provas para mim, pessoas que me acolheram em suas casas e amigos que fizeram a inscrição para mim, pois não tinha acesso à internet. 

Em 2014, quando estudava para o ENEM e vestibulares, não precisei trabalhar. Olha só, baita de um privilégio, diga-se de passagem, e mesmo assim foi difícil. E falo isso por ter tido, recentemente, uma indignação despertada: a propaganda do ENEM 2020 diz para os jovens estudarem apesar de tudo. Apesar de existir uma pandemia e a consequente maior crise contemporânea. Apesar de as escolas públicas não estarem funcionando ou não terem tecnologia para o ensino à distância. Apesar de haver um percentual gigantesco de excluídos digitais. Apesar de muita gente morar no campo ou nas favelas. Apesar de a fome e a ausência de saneamento básico baterem na porta de inúmeras famílias. Apesar de pessoas morrendo, o Ministério da Educação (MEC) disse para os nossos jovens estudarem. Jogou para eles a responsabilidade, quando é o nosso direito ter acesso garantido à educação de qualidade.

No meu ano de estudos para o ENEM e FUVEST, eu praticamente não dormia. Quando tinha que acessar algo na internet, precisei ficar no escuro, à noite, no meio da estrada, para encontrar sinal no celular. Nos dias sem luz elétrica, as velas eram as grandes companheiras. Eu me sentia culpada por não saber de todos os conteúdos abordados pelos vestibulares. E quando o MEC diz que, apesar de tudo, devemos seguir com o planejamento de estudos, por considerar que o ENEM não deva ser adiado, ele se esquece da sua grande missão: defender a educação universal, que inclui, em vez de excluir.

O meu ano de preparo para as provas de acesso ao ensino superior foi o mais difícil, quando a realidade foi escancarada de vez e mostrou que o mundo era além daquilo que eu vivia; era maior, maior principalmente nas desigualdades e que só havia uma forma de eu conseguir mudar um pouco a situação da minha família. A minha realidade já estava condicionada a permanecer como estávamos, mas eu tive pessoas que me lembraram que eu precisava esperançar por outros horizontes. Foi difícil. Sem internet ou acesso à rede de celular, uma vez por dia eu separava essa cadeira para levá-la até um local onde tinha sinal e meus professores poderiam me mandar SMS tirando dúvidas. Para saber o resultado do ENEM e me inscrever no SISU, precisei ficar no meio da estrada, na tal escuridão de um bairro que não possui iluminação pública. E, quando não tinha luz, o jeito foi estudar com vela. “Por sorte”, no final deu certo. 

Num combo de achar que eu não conseguiria nunca; que eu era culpada por não aprender os conteúdos sozinha, quando na verdade era meu primeiro contato com determinados temas. Sem transporte público e longe dos locais de prova, tinha que acordar 4h da manhã para uma prova às 13h. Como competir ou falar de meritocracia dentro desses moldes?

Hoje, eu posso me expor aqui. Minha vida mudou drasticamente. E quando escutamos que “o ENEM não foi feito para corrigir injustiças”, institucionalizam o ato de manter à margem uma população que tem na educação a única ferramenta de transformação da sua vida e da vida de toda a sua família. A propaganda que vimos em 2020 diz que os profissionais do futuro não podem parar agora por causa de uma quarentena em virtude de uma pandemia. Em contrapartida, sonhos de uma amplitude de jovens são desfeitos; por mais que eles queiram seguir os estudos, para muitos essa opção não é viabilizada. Jovens que, ao crescerem num país desigual como é o nosso Brasil, têm na educação uma possibilidade mínima de acessarem espaços tão restritivos à sua elite. 

Se falamos em cidadania e políticas sociais, todos nós devemos estar comprometidos para o fortalecimento das políticas públicas a fim de caminharmos rumo à equidade. E só quem vive na pele sabe o quanto isso é realidade. E dói escrever isso no contexto em que estamos, com o aumento da desigualdade social e o descaso para com quem mais precisa. Nós temos o compromisso e a responsabilidade de assumirmos a luta constante para que todos tenham as mesmas oportunidades. Após ingressar na universidade, tive o suporte das políticas de auxílio à permanência estudantil: fui bolsista e moradora do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP). Sem esses apoios, eu não teria esse relato. Somente as políticas públicas sociais resolverão a longo prazo todas as discrepâncias com as quais hoje nos deparamos. Elas devem ser ampliadas, não reduzidas.

Termino aqui com uma frase de um dos grandes idealizadores na luta pela educação pública brasileira: Anísio Teixeira, cujo nome aparece no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), autarquia federal responsável por realizar  provas como o ENEM e o ENCCEJA. Assim como ele, eu acredito que “só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública”. Que possamos esperançar e alcançar essa educação que é de todos para todos.