O texto corresponde ao Capítulo 3 da dissertação de mestrado “Equidade educacional na Federação brasileira: o papel das transferências federais aos municípios”, concluída em Abril de 2020 no âmbito do mestrado acadêmico em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (SP). De autoria de Caio Callegari e orientação de Fernando Abrucio.


 

Há duas formas principais de explicar a importância de tratar da equidade educacional, tema menos presente do que deveria no debate brasileiro. Do ponto de vista utilitário, como meio para alcançar uma “qualidade sistêmica” (Todos Pela Educação, 2018), ações de equidade vêm sendo consideradas como a principal variável explicativa para o atingimento e progresso de bons resultados em avaliações internacionais como o PISA (Pfeffer, 2015). Estônia, Hong Kong, Xangai e Vietnã são os sistemas de destaque, os quais atingiram altos níveis educacionais de forma perene e onde os estudantes mais pobres têm resultados iguais ou superiores aos dos estudantes mais ricos. No Brasil, os estados do Acre e do Ceará se destacam por seus altos e crescentes resultados de aprendizagem nas provas nacionais mesmo em contextos socioeconomicamente desfavoráveis[1], sendo que as estatísticas do Governo Federal revelam também que tais estados apresentam as menores dispersões de nota entre as escolas mais ricas e mais pobres.

Além disso, o investimento em políticas estruturadas com a finalidade de promover equidade educacional geram maiores retornos em termos de resultados educacionais na comparação com ações sem foco em equidade (Banerjee et al., 2005; Unesco, 2019). A inferência não é causal, mas a conclusão de tais análises é que sistemas educacionais mais equitativos têm em geral melhores resultados médios e que a orientação pela equidade é também uma forma de ampliar a eficiência do gasto educacional.

Mas, como dissemos, a equidade não deve ser enxergada apenas pelo prisma utilitário, de sua relação empírica com a qualidade. Seu conceito é polissêmico e multifatorial, abarcando também aspectos do debate político e moral. Segundo a extensa revisão da literatura de Unesco (2019), “equidade envolve um julgamento normativo de uma distribuição [de insumos e resultados]”.

Nesta pesquisa, discutimos de forma não-extensiva a noção da equidade ligada à “justiça social”. De acordo com Jacob e Holsinger (2008), a “equidade considera as ramificações da justiça social na educação em relação à igualdade, justiça e imparcialidade de sua distribuição”. Simielli (2015) discute os conceitos de justiça de Rawls, Sen e Roemer para ambientar a construção de sua visão de equidade, a qual será tratada adiante. Optamos por não entrar no debate dos conceitos de justiça, partindo diretamente para os conceitos de equidade encontrados na literatura.

Na visão da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a ideia central de equidade é que todos possam receber o apoio/suporte conforme suas necessidades para que as oportunidades sejam homogeneamente oferecidas – sem que elas sejam definidas pelo código postal de onde se nasceu. Isso difere da ideia de “igualdade”, segundo a qual todos recebem o mesmo apoio/suporte, com igual tratamento (OCDE, 2018).

A Organização define que a equidade é a situação em que:

“estudantes de diferentes status socioeconômicos, gêneros ou origem familiar e imigrante alcançam, durante o ciclo de ensino, níveis semelhantes de resultado acadêmico nos domínios cognitivos – como leitura, matemática e ciências – e níveis semelhantes de bem-estar social e emocional em áreas como satisfação na vida, autoconfiança e integração social. Equidade não significa que todos os estudantes obtenham resultados educacionais iguais, mas que as diferenças entre os resultados dos estudantes não estejam relacionados a sua origem ou a circunstâncias econômicas e sociais sobre as quais os estudantes não tenham controle”[2]. (OCDE, 2018)

O trabalho de Simielli (2015) sistematiza parte da literatura sobre o tema e se fundamenta na noção de que “há em comum a todas as diferentes visões sobre equidade a atenção aos indivíduos menos favorecidos da sociedade”. Para a autora, há três linhas fundamentais de conceituação, definindo equidade como:

  • acesso justo a recursos e processos que impactam os resultados dos estudantes, considerando que é justo quando os recursos e processos são igualmente garantidos a todos (Willms et al., 2012; Hutmacher, 2001);
  • resultados educacionais não-condicionados a diferenças socioeconômicas, de maneira que resultados diferentes dos alunos não devam ser atribuídos a diferenças de renda, poder, posses ou saúde (Levin, 2003). Um sistema equitativo, na visão de Perry (2009), “acomoda todos os alunos e garante um bom desempenho para a maioria”, fazendo com que todos os estudantes atinjam seu potencial independente de sua origem;
  • e, em uma terceira via híbrida pluralista, uma visão de equidade “que avalia como essencial o diagnóstico do acesso, dos recursos e processos, e dos resultados” – focando na igualdade de oportunidades. Duru-Bellat e Mingat (2011) conceituam a equidade como excelência, não apenas de resultados como de características do sistema. Crahay e Monseur (2001), por sua vez, focam na possibilidade igualitária de progressão, na igualdade de tratamento na escola (insumos educacionais), na igualdade de desempenho e de realização (chance de usar os conhecimentos adquiridos na vida e na carreira).

De Simielli (2015), extraímos o seguinte trecho: “dentre os pesquisadores brasileiros, Soares e Andrade (2006) entendem equidade como uma medida de como cada escola acirra ou modera as diferenças socioeconômicas entre seus alunos. Ribeiro (2012, p. 60), por sua vez, define equidade na rede escolar da educação básica como “a situação de desempenho que se define como adequada para todos os alunos e de baixa desigualdade escolar, com consequente bom desempenho dos alunos de nível socioeconômico – NSE mais baixos (ou alunos de grupos associados a outras circunstancias de origem que pesam sobre os resultados)””.

Já a categorização de Unesco (2019) propõe cinco categorias de equidade educacional, cada qual com um diferente ferramental empírico de medição que será discutido no capítulo 5. Abaixo, apresentamos as categorias e as analisamos brevemente:

  • Meritocracia: a noção de justiça social nessa perspectiva de valoriza aqueles indivíduos que mais esforçaram para alcançar oportunidades educacionais. O mérito pode comportar tanto o cumprimento de práticas educacionais quanto o nível ou avanço em resultados educacionais, como é o caso da distribuição do ICMS Cearense (Abrucio et al., 2016). Essa categoria pode não ser suficiente para identificar desigualdades de partida ou variáveis condicionantes que impeçam uma “corrida justa”. Vale salientar que essa perspectiva de equidade pressupõe uma competição entre indivíduos, sendo uma distribuição equitativa aquela que valoriza aqueles indivíduos mais meritórios frente a outros.
  • Padrões mínimos: a equidade como garantia de padrões mínimos é estruturada na linha de que há condições básicas de dignidade ou subsistência que devem ser comuns a todos os indivíduos. Nesse sentido, uma situação de equidade é aquela em que toda a população se encontra acima do padrão mínimo, não sendo central a desigualdade entre os indivíduos acima do mínimo. Tal é a noção, por exemplo, da linha de pobreza. O padrão mínimo pode ser construído tanto na perspectiva de insumos educacionais quanto de resultados educacionais. Essa perspectiva se relaciona à visão de Soares e Andrade (2006) e Ribeiro (2012), mas destoa de OCDE (2018). Uma distribuição de recursos que se guia por esse conceito é, como já tratado nesta pesquisa, a complementação da União ao FUNDEB, na medida que destina recursos a todos os fundos estaduais com valor aluno/ano abaixo do valor mínimo nacional.
  • Imparcialidade: nessa linha de equidade, a noção fundamental é que as oportunidades educacionais devem ser distribuídas igualmente com relação a diferenças que, normativamente, não deveriam ser condicionantes. No seio dessa perspectiva, há a ideia de que o sistema educacional deve ser livre de discriminação e que diferentes grupos populacionais devem ter uma chance igual de acessar cada tipo de oportunidade. Recursos e oportunidades devem então ser distribuídos igualmente entre todos os grupos populacionais – gênero, etnia, religião, idioma, localização e riqueza, por exemplo. Trata-se de uma “equidade horizontal”, na definição de Berne e Stiefel (1984). A orientação é a mesma daquela contida na definição de equidade de OCDE (2018). Políticas públicas que buscam garantir igualdade de acesso a alguns grupos vulneráveis, como cotas para negros em universidades, para crianças pobres em creches (Callegari e Gomes, 2018) e para mulheres e negros em cargos públicos, reverberam este ideal de equidade.
  • Igualdade de condições: uma variante de equidade horizontal é a perspectiva de que deve haver tratamento igual de todos os indivíduos da população, na medida que partilham de mesma importância na sociedade. Sob essa ótica, a equidade deve ser analisada segundo a distribuição de oportunidades não-segmentada por grupos, mas de forma contínua. Políticas de atendimento universal, como a distribuição de material didático do PNLD, estão imbuídas da ideia de equidade como “igualdade de condições”. A própria dinâmica intraestadual do FUNDEB segue essa linha de equidade, ao redistribuir o bolo tributário de um estado entre todos os seus entes federativos unicamente de acordo com o número ponderado de matrículas.
  • Redistribuição: essa categoria de equidade pressupõe a distribuição desigual de insumos educacionais de modo a compensar desvantagens existentes, com o objetivo de igualar resultados dos diferentes indivíduos da população. Reflete a preocupação de Sen (1999) de que uma distribuição igualitária de bens/insumos não leva a uma distribuição igualitária de oportunidades. Trata-se, de acordo com Berne e Stiefel (1984), de “equidade vertical”. Esta perspectiva aborda a visão de Simielli (2015), de que deve haver maior atenção aos menos favorecidos na sociedade e que as diferenças sejam consideradas para criar mecanismos contrários ao ciclo da pobreza e da desigualdade.

Nesta pesquisa, seguimos a ideia de “redistribuição” como norte normativo de equidade no sistema de financiamento da Educação. A opção teórica está expressa em Callegari e Gomes (2018), entendendo a equidade como o empreendimento de ações para garantir oportunidades educacionais iguais à população em idade escolar. Ou seja, dar mais recursos pedagógicos e financeiros para quem é socialmente mais vulnerável e para quem tem menos oportunidades educacionais.

O financiamento redistributivo é, assim, instrumento para que o Brasil possa alcançar, no futuro, um cenário de igualdade de oportunidades educacionais. Há uma visão pluralista de equidade, considerando que os resultados não podem estar condicionados à origem do estudante e que isso está ligado a uma distribuição injusta de insumos educacionais. Contudo, o que vemos é uma distribuição injusta de insumos educacionais como marca do federalismo brasileiro: são os municípios mais vulneráveis, que atendem as crianças e jovens de famílias mais pobres e com herança familiar de parca exposição ao letramento, aqueles que têm menos recursos e menores capacidades gerenciais – o que se traduz em piores resultados educacionais.

Frisamos que a opção conceitual considera, portanto, a noção de equidade vertical. Para Simielli (2015), devemos ter em mente “que os alunos não são todos iguais e levar em consideração o ponto de partida de cada um em relação aos demais alunos. Equidade vertical pressupõe uma distribuição desigual de recursos visando a atingir resultados similares”. É nesse sentido que focaremos a análise das transferências federais para a Educação Básica dos municípios brasileiros, observando em que medida as transferências beneficiam mais intensamente os mais vulneráveis.

O trabalho realizado por Unesco (2019) também versa sobre características que devem ter um sistema de financiamento que seja orientado pela equidade vertical: “embora a igualdade no financiamento signifique o desembolso da mesma quantia de dinheiro para cada estudante, a equidade no financiamento significa fornecer recursos adicionais para aqueles que enfrentam desvantagens herdadas. Somente assim as crianças terão as mesmas oportunidades de atingir seu potencial na Educação”.

Ao tratar de equidade e não de igualdade no financiamento, a opção analítica é explorar a diferença de tratamento que cada transferência dá a diferentes níveis de vulnerabilidade dos municípios. Não objetivamos saber se todos os municípios estão recebendo o mesmo valor por aluno em uma determinada transferência federal, mas se os municípios mais vulneráveis estão efetivamente recebendo mais.

As análises de Unesco (2019) para o financiamento da Educação em diferentes nações ao redor do mundo centraram a lente de investigação na destinação de recursos financeiro para os extremos de renda da população de estudantes. A condição socioeconômica é certamente dimensão que deve ser analisada, uma vez que é fortemente correlacionada com diferentes variáveis relativas à consecução do direito educacional: como veremos no próximo capítulo, estudantes com piores níveis socioeconômicos são, relativamente, aqueles que menos frequentam a escola, acessam escolas com piores condições de infraestrutura, evadem mais e tem piores resultados de aprendizagem, em um círculo vicioso da pobreza (Callegari e Lázaro, 2017).

Traçando um paralelo, uma política equitativa no âmbito das relações federativas da Educação brasileira deve dar maior atenção aos municípios que atendem os alunos mais vulneráveis e, por sua vez, são também eles mais vulneráveis na comparação com os demais municípios.

Além disso, uma política equitativa de financiamento deve também almejar tornar as próprias condições gerais de financiamento mais equitativas, em uma proposta compensatória que se destine a equilibrar desigualdades em todo o sistema de financiamento. Vale repisar que o sistema brasileiro é fundamentalmente baseado nas condições tributárias dos entes (em função da vinculação de impostos), estas profundamente desiguais.

Pode-se pensar em uma política mais acurada do ponto de vista de garantia de equidade como “padrão mínimo” de financiamento, mas a noção chave que aqui elegemos é a importância de dar mais insumos/recursos educacionais para quem hoje tem menos insumos/recursos educacionais – como avalia Tanno (2017).

Uma política cujo viés de equidade coloca como norte normativo o padrão mínimo pode gerar um efeito apequenado sobre a redução das desigualdades de oportunidades educacionais caso o padrão mínimo seja alcançado facilmente. Em nossa lente analítica, entendemos que a equalização fiscal deva ser buscada mesmo que todos os municípios superem um determinado padrão mínimo. Isso porque o nível de investimento educacional apresenta forte correlação, e em alguns estudos relação causal, com os resultados de aprendizagem dos estudantes (Vegas e Coffin, 2015; Todos Pela Educação, 2019; Jackson et al., 2015; Hyman, 2017; Lafortune et al., 2018). Do ponto de vista do direito cidadão, não é justo que as grandes diferenças fiscais que observamos hoje condicionem as possibilidades de aprendizagem das crianças e dos jovens.

Por fim, há uma terceira vulnerabilidade que deve ser considerada que é a própria vulnerabilidade educacional de um município. Ainda que não se trate de uma vulnerabilidade “exógena”, esse componente é crucial para posicionar o sentido de equidade de uma ação governamental. Essa vulnerabilidade diz respeito à distribuição de resultados educacionais, o que se pretende equalizar para garantir o igual direito de todos à Educação de qualidade.

Não é possível afirmar que municípios tem baixos resultados educacionais apenas por falta de recursos ou por herança de defasagem educacional, o que poderia ser compensado por políticas focadas na vulnerabilidade socioeconômica e na vulnerabilidade fiscal. Há, também, aspectos de gestão educacional, relativas a condições gerenciais de um município e nuances específicas da rede de ensino, que podem fazer com que um município fiscal e socioeconomicamente vulnerável seja mais desenvolvido do ponto de vista de resultados educacionais e com que um município fiscal e socioeconomicamente desenvolvido seja vulnerável educacionalmente. Naturalmente, incluir essa dimensão no conceito analítico de equidade pressupõe que deve haver maior atenção da política pública aos municípios com piores resultados educacionais, para que se garanta aos seus estudantes uma igualdade de oportunidades educacionais.

Em suma, a lente analítica aqui apresentada faz opção pelo conceito de equidade vertical no financiamento da Educação, um financiamento redistributivo cujo desenho direcione mais recursos para os entes federativos que mais precisam para que, ao fim e ao cabo, haja oportunidades educacionais iguais em todo território brasileiro. Essa equidade vertical contempla 3 dimensões de vulnerabilidade: socioeconômica, fiscal e educacional.

Disso derivam três capacidades que o financiamento interfederativo da Educação deve alcançar: a capacidade de apoiar municípios em situações de maior vulnerabilidade socioeconômica; a capacidade de equalizar os recursos para investimento em Educação; e a capacidade de apoiar municípios com maiores desafios educacionais.

Tabela – Resumo das opções sobre o conceito de equidade

Opção de conceito de “equidade” da tipologia de Simielli (2015) Opção de conceito de “equidade” da tipologia de Unesco (2019) Dimensões de vulnerabilidade selecionadas que devem ser mitigadas através de política de financiamento Formulação de conceito de equidade como norte dessa pesquisa
Visão pluralista: os resultados não devem estar condicionados à origem dos estudantes e para reverter isso é preciso distribuição desigual e justa dos insumos educacionais. Equidade vertical: as ações de equidade devem ser redistributivas, compensatórias, em favor dos indivíduos menos favorecidos da população. 1) Socioeconômica (condição de renda e de desenvolvimento social do município)

2) Fiscal (disponibilidade de recursos para investimento em educação)

3) Educacional (oportunidades de aprendizagem atualmente garantidas)

Empreendimento de ações para garantir oportunidades educacionais iguais de aprendizagem à população em idade escolar, através de proposta compensatória e redistributiva que objetive dar mais recursos pedagógicos e financeiros (insumos) para quem é fiscal e socioeconomicamente mais vulnerável e para quem tem menos oportunidades educacionais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Resultados organizados pelo INEP/MEC em 2018: https://medium.com/@inep/resultados-do-saeb-2017-f471ec72168d

[2] Tradução livre.