Ensaio produzido como trabalho final para disciplina Teoria Política, do curso de mestrado acadêmico em Administração Pública e Governo (FGV-SP), no 1º semestre de 2018.

Nota fundamental: A PEC 015/2015 foi aprovada na forma da Emenda Constitucional nº 108/2020 e regulamentação via Lei Federal nº 14.113/2020, com alterações na regra de contagem das matrículas. O ensaio não considera tal acontecimento porque foi escrito no 1º semestre de 2018. Cabe salientar que a lei do Novo FUNDEB traz três principais mudanças na regra de contagem das matrículas:

  • a dupla contagem das matrículas da  educação profissional técnica de nível médio articulada e do itinerário de formação técnica e profissional do ensino médio;
  • a introdução de um fator multiplicativo de 1,5 do peso das matrículas de creche e pré-escola para efeito na distribuição da complementação-VAAT;
  • a criação de fatores de ponderação de equidade fiscal, de equidade socioeconômica e de potencial de arrecadação tributária, que ainda não entraram em operação.

 

Introdução

O Congresso Nacional brasileiro tem estimulado, entre 2017 e 2018, debates sobre as políticas nacionais de financiamento público da Educação Básica, com vistas a coletar propostas para o seu aprimoramento. Especialistas educacionais, gestores públicos, entidades de representação setorial e atores da sociedade civil tem sido ouvidos no âmbito uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados, a qual trata mais particularmente da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 015/2015[1]. Essa PEC estipula a inscrição do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) na parte permanente da Constituição Federal, tornando esse Fundo uma política perene do Estado brasileiro. Hoje, o Fundeb está inscrito apenas na parte transitória da Constituição (Art. 60 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias), com vigência definida até o final de 2020.

Há um consenso manifesto nas falas dos participantes das mais de 30 audiências públicas organizadas pela Comissão Especial[2] de que há tantos efeitos benéficos da política do Fundeb que é preciso que sua vigência não seja temporária, e sim permanente. Dois dos efeitos sempre evocados são o processo de melhor organização do sistema educacional brasileiro e o estímulo ao avanço do atendimento escolar na Educação Básica.

As estatísticas educacionais revelam que, de fato, o Brasil apresentou elevação na taxa de atendimento escolar entre 2005 (antes da vigência do Fundeb) e 2015. Os dados, elaborados pelo Todos Pela Educação com base na Pnad/IBGE[3], mostram que a proporção da população de 4 a 17 anos na escola passou de 89,5% para 94,2%. Já a população de 0 a 3 anos matriculada na creche saltou de 16,7% para 30,4%.

Além disso, a distribuição das matrículas das redes de ensino entre as etapas escolares permite enxergar que houve um processo de maior delimitação do escopo de atuação municipal-estadual, o que contribui para uma melhor definição das responsabilidades federativas e para a organização do sistema educacional. Considerando apenas a repartição de matrículas nas redes municipais e estaduais[4], vemos que as primeiras passaram cada vez mais a se concentrar na Educação Infantil e as segundas no Ensino Médio. Em 2007, 96,2% das matrículas na Educação Infantil ocorriam nas redes municipais; em 2015, a proporção foi de 99,0%. No Ensino Médio, a proporção de matrículas nas redes estaduais passou de 97,8% em 2007 para 99,3% em 2015.

Apesar ser ecoada nas argumentações dos mais diversos atores, a tese de que é o Fundeb que engendrou tais efeitos não apresenta, ainda, embasamento teórico mais claro. É fundamental ao debate que se investigue qual ou quais regras institucionais trazidas pelo Fundeb podem ter contribuído para os movimentos de concentração do atendimento das redes de ensino e para o avanço no atendimento escolar (sobretudo na Educação Infantil). Assim será possível alcançar uma formulação teórica mais aprofundada que seja suficiente para embasar a manutenção de algumas das figuras institucionais trazidas pelo Fundeb. O presente ensaio pretende trazer contribuições dessa ordem, através da análise de três perspectivas neo-institucionalistas sobre uma das regras basilares de funcionamento do Fundeb.

 

Uma instituição a ser investigada: regra de contagem de matrículas no Fundeb

O Fundeb funciona como um mecanismo redistributivo de recursos financeiros no âmbito de cada Unidade da Federação brasileira. Sua regulamentação está inscrita na Lei nº 11.494 de 2007. Em cada estado, Prefeituras e Governos estaduais contribuem com parte de suas receitas tributárias[5] para um fundo único, que redistribui os recursos de acordo com o número de matrículas em cada rede de ensino. Quanto mais matrículas um ente federativo tiver, mais recursos receberá de volta do Fundeb. Esse mecanismo gera, de acordo com (DINIZ, 2012), uma competição por matrículas entre as redes de ensino que pode ser a chave para atender a ampliação da taxa de atendimento – embora haja outras peças no quebra-cabeça que precisem ser consideradas e que serão discutidas mais adiante.

Do ponto de vista da indução gerada pelo Fundeb, é preciso considerar que a composição das matrículas em termos das etapas de ensino a que dizem respeito é crucial para o cálculo redistributivo. Ano a ano, o Ministério da Educação publica portaria que informa os fatores de ponderação das matrículas para o cálculo redistributivo[6], segundo a qual, por exemplo, uma matrícula na Educação de Jovens Adultos vale 0,8, uma matrícula nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental urbano de tempo parcial vale 1 e uma matrícula em creche pública de tempo integral vale 1,3. A relação entre esses fatores de ponderação e os custos reais das etapas pode contribuir para a compreensão das induções geradas pelo Fundeb no comportamento dos gestores públicos em termos da oferta de vagas na Educação Básica.

Há, contudo, uma regra adicional que rege o sistema de contagem de matrículas do Fundeb e que será o objeto principal dessa análise. O Art. 60 do ADCT, em seu inciso II, estipula que serão considerados somente os alunos matriculados nos âmbitos de atuação prioritária das redes de ensino. A atuação prioritária é definida pelo §§ 2º e 3º do Art. 211 da Constituição Federal: “os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil” e “os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio” (BRASIL, 1988). Com isso, efetivamente, as matrículas que as redes municipais tiverem no Ensino Médio não contam no cálculo de quando receberão do Fundeb, assim como não contarão as matrículas que as redes estaduais possuírem na Educação Infantil. Pode essa regra ter gerado a maior delimitação de atuação de estados e municípios na Educação Básica?

 

Delineando a lente neo-institucionalista de investigação

A questão de pesquisa acima formulada pode ser avaliada a partir de uma lente neo-institucionalista, tomando como premissa que a regra de contagem de matrículas no Fundeb atua como uma instituição que altera as estradas e os horizontes por onde se guia a ação política dos gestores públicos – os quais têm, grosso modo, o poder de fixar o número de matrículas de sua rede em cada etapa de ensino.

É possível enquadrar a regra do Fundeb em questão como uma “instituição”, emprestando a definição de (HALL & TAYLOR, 1996): instituições são protocolos, regras, regras ou convenções editadas pelas organizações formais, que balizam a estrutura de uma comunidade política ou de uma economia política. As regras que compõem a ordem constitucional podem ser consideradas, nesse sentido, instituições.

A pergunta central, nesse caso, é como a regra de contagem do Fundeb que desconsidera a Educação Infantil para as redes estaduais e o Ensino Médio para as redes municipais atua enquanto instituição. Utilizando como referência As três versões do Neo-institucionalismo, de Peter Hall e Rosemary Taylor (1996), é importante considerar que há pelo menos três approaches possíveis para compreender a questão, cada um deles referente a uma diferente corrente do neo-institucionalismo. As três escolas de pensamento são, segundo tipologia dos autores, o institucionalismo da escolha racional, o institucionalismo sociológico e o institucionalismo histórico.

Através de cada uma delas, pode-se enxergar um diferente significado da instituição na perspectiva da atuação dos gestores públicos. A soma integrada, e não justaposta, dos três significados, por sua vez, permite uma compreensão mais ampla do mecanismo real de influência do Fundeb nas decisões estratégicas de atendimento educacional.

 

Agindo estrategicamente pelo bolso

A leitura mais corrente do sentido da indução do Fundeb sobre o aumento do atendimento escolar traz uma abordagem típica da escola da escolha racional. Os gestores públicos fixam o número de matrículas em cada etapa observando o sistema de incentivos financeiros que representa o Fundeb. Se uma matrícula adicional representar receita adicional, há uma estratégia lógica de que o gestor deve atuar no sentido de ampliar seu atendimento escolar.

Essa perspectiva calculadora, nos termos expostos por (HALL & TAYLOR, 1996), toma com pressuposto que há uma preferência dos gestores – em particular dos prefeitos e governadores brasileiros – por mais recursos à disposição de suas redes de ensino, o que ampliará as possibilidades de realização educacional e de fortalecimento das políticas públicas em um ente federativo. Embora a Educação não seja o tema que determine o voto popular em larga medida[7], a lógica desse modelo contempla os comportamentos vote-seeking e policy-seeking dos prefeitos e governadores (STROM, 1990), ou seja, a tendência dos prefeitos agirem visando maximizar os votos nas eleições seguintes (mantendo-se no poder) e visando maximizar suas realizações em termos de políticas públicas.

Na linha da tese da escolha racional há, portanto, uma conduta de maximizar um benefício dada uma preferência que é definida de maneira exógena – os comportamentos naturais dos prefeitos e governadores, no caso. Esses gestores, que controlam o orçamento e tem relativa liberdade para definir as despesas em cada política de seu ente federativo, agem politicamente com intencionalidade seguindo estímulos de um sistema de recompensas como o Fundeb.

Nesse sentido, uma instituição que zera os recursos recebidos do Fundeb por uma matrícula adicional gera um desestímulo para que o gestor público envide esforços para concretizar aquela matrícula na sua rede. É o caso do desincentivo gerado sobre os prefeitos para expandirem suas redes no Ensino Médio. Se na corrida por recursos uma matrícula no Ensino Médio nada conta, não há razão para realiza-la, uma vez que há apenas custo marginal financeiro decorrente sem nenhum subsídio advindo do Fundeb. Esse sistema leva, por consequência, a um desestímulo à sobreposição da redes estaduais e municipais no Ensino Médio e na Educação Infantil num determinado território.

Há ainda dois conceitos típicos do institucionalismo da escolha racional que podem ser aplicados na reflexão sobre os efeitos da instituição do Fundeb na determinação do comportamento dos gestores no que tange ao atendimento escolar. Considerando que os gestores participam de um jogo contra os demais gestores na corrida por recursos do Fundeb, em uma lógica da teoria dos jogos, a regra de contagem de matrículas confere maior certeza sobre como os atores irão se comportar. Caso sejam maximizadores, é racional estabelecer a expectativa de que prefeitos irão se concentrar nas creches e os governadores irão se concentrar no Ensino Médio, etapas onde há uma margem para ampliação das matrículas maior, dada a situação de quase-universalização do Ensino Fundamental brasileiro (97,7% das crianças de 6 a 14 anos matriculadas no Ensino Fundamental – dados de 2015 da Pnad/IBGE). Essa explicação articula ao mesmo tempo os resultados observados de ampliação do atendimento em creche e a circunscrição das atuações dos entes estaduais e municipais na Educação Básica.

O segundo conceito está relacionado à tese de (NORTH, 1990) de que as instituições promovem redução nos custos de transação. É possível transladar essa construção para o caso do Fundeb. Gestores públicos terão maior segurança para expandir matrículas em determinadas etapas ao saberem que receberão recurso do Fundeb (cuja previsão é constitucional e tem permanência garantida até 2020) para financiar essa ação. A instituição dá a garantia de subsídio financeiro à ação política do gestor. É uma escolha estratégica racional e estratégica, portanto, concretizar a expansão de matrículas nas etapas determinadas onde haveria um menor custo de transação.

Contudo, a perspectiva aqui construída só faz sentido caso a receita marginal de uma matrícula no Fundeb for maior que o custo marginal da matrícula para a rede, estimulando o comportamento dos atores. Não há, porém, nenhum estudo recente de custos da Educação Básica que sustente evidências nessa linha.

Isso não invalida a aplicação da tese da escolha racional para a compreensão de como a regra de contagem de matrículas do Fundeb orienta a ação dos gestores públicos, mas a coloca em questão. Outro contra-argumento forte é a observação do que ocorreu no período anterior ao estabelecimento da regra de distribuição de recursos do Fundeb, o que permite entender se de fato a mudança institucional produziu uma “bifurcação” nos resultados. Concretamente, o que ocorre é que a delimitação dos governos estaduais como provedores de matrículas no Ensino Médio já vinha ocorrendo antes do Fundeb. Em 2006, considerando apenas as matrículas nas redes municipais e estaduais no Ensino Médio[8], 97,8% estavam sob gestão estadual. Dez anos antes, em 1996, esse percentual era consideravelmente menor, de 93,0%.

 

Reflexo de um enquadramento cultural

Se o institucionalismo da escolha racional não é suficiente para compreender na totalidade o fenômeno de delimitação das atuações dos estados e municípios na Educação Básica, as contribuições do institucionalismo sociológico podem ajudar a consolidar um pano de fundo mais amplo sobre a questão.

De acordo com (HALL & TAYLOR, 1996), há uma perspectiva cultural que deve ser largamente considerada. Apesar da pertinência da tese de escolha estratégica que discutimos, a escola sociológica postula que os comportamentos não necessariamente se explicam por serem os mais eficazes. Na realidade, os comportamentos seriam limitados pela visão de mundo dos indivíduos. O repertório de suas ações está ligado ao que se pode imaginar fazer.

Nesse sentido, pode-se argumentar que a cultura educacional brasileira dispõe a Educação Infantil dentro e o Ensino Médio fora do campo de visão dos prefeitos, e o contrário ocorrendo com os governadores. Isso pode estar ligado à noção da própria separação federativa: os estados tendem a lidar com o provimento de serviços em maior escala e que muitas vezes demandam uma organização supramunicipal, como é o caso do Ensino Médio; já os municípios lidam com serviços em menores escalas, com maior necessidade de diálogo com os desafios locais das famílias distrito a distrito e com demanda de cuidados mais individualizados, algo mais próximo da realidade do atendimento de crianças em creches e pré-escolas.

Nesse caso, não haveria uma preferência exógena dos gestores públicos por votos ou recursos, mas um comportamento afinado com uma determinada cultura organizacional. É interessante pensar os gestores público como satisficers, seguindo protocolos já estabelecidos e manifestos, por exemplo, na demanda da população por creches nas disputas eleitorais municipais.

A regra do Fundeb que estamos considerando, portanto, não deve ser considerada como um divisor de águas que altera o comportamento estratégico dos atores. É verdade que ela fornece ao sistema um modelo cognitivo de interpretação e ação, mas ela vem a reforçar todo um arcabouço de instituições pré-existentes, que inclusive condicionaram e favoreceram a criação da instituição. É o caso do Art. 211 da Constituição Federal, estabelecido em 1996, e das decisões judiciais que tendem a atribuir aos municípios a responsabilidade pelo atendimento na Educação Infantil (GOTTI & XIMENES, 2012).

Nesse sentido, os entes desempenham culturalmente papéis específicos e seus representantes agem de acordo com os espaços de movimentação próprios de cada papel. Segue-se uma lógica de conveniência social, em que a delimitação de responsabilidades permite equilibrar e circunscrever as preocupações dos gestores. É importante, contudo, compreender como esses papéis culturais vieram a ser historicamente constituídos. Observando esse objetivo, as contribuições do institucionalismo histórico podem aportar novas categorias que componham o quebra-cabeças.

 

Tendência de maior delimitação das atuações na Educação

Com uma linha argumentativa articulada ao institucionalismo sociológico, dando maior enfoque ao condicionamento cultural das ações políticas, o institucionalismo histórico ajuda a compreender a formação das decisões dos gestores públicos no que tange ao atendimento escolar, a partir de uma ótica de um processo histórico acumulado.

Não é possível compreender o arcabouço institucional decisório sem observar que há uma trajetória histórica de maior delimitação das atuações dos níveis federativos na Educação brasileira e que as induções institucionais estão ligadas a esse trajeto. A tese de path dependence ganha força ao se analisar concretamente que houve na década de 90 e de 2000 movimentos claros para circunscrição de atuações federativas. Assim como se argumentaria através da lógica do institucionalismo sociológico, esses movimentos aprofundaram um quadro cultural e foram as bases para a regra institucional do Fundeb de contagem de matrículas.

O primeiro desses movimentos foi a aprovação da Emenda Constitucional nº 14/1996, que alterou a Constituição Federal em seu Art. 211. Se antes, no texto original de 1988, a Constituição atribuía a atuação prioritária dos municípios ao Ensino Fundamental e à Pré-Escola, sem determinações a respeito dos estados, o novo dispositivo legal estabeleceu que a atuação prioritária municipal abarcaria também a creche e que passaria a haver uma figura de atuação prioritária estadual, contemplando Ensino Fundamental e Ensino Médio.

Note-se que já na Constituição Federal original de 1988 já havia alguma circunscrição de atuações, o que ajuda a explicar o fato de que apenas 7,0% das matrículas do Ensino Médio estavam a cargo dos municípios. As Constituições anteriores, de 1934 e de 1967, nada traziam nesse sentido, mas há um primeiro mecanismo indutor de responsabilidades previsto no Art. 29 da Lei nº 4.024/1961, que fixou diretrizes e bases da Educação nacional: “Cada município fará, anualmente, a chamada da população escolar de sete anos de idade, para matrícula na escola primária [atualmente anos iniciais do Ensino Fundamental]”. Esse mecanismo pode ser analisado como uma primeira responsabilização dos governos municipais pelos extratos iniciais da Educação, do que pode decorrer a cultura de atenção educacional mais básica atribuída também, mais adiante historicamente, à Educação Infantil.

Na sequência da determinação constitucional mais recente disposta no Art. 211, a nova lei de diretrizes e bases da Educação nacional, Lei nº 9.394/1996, contribuiu para delimitar as responsabilidades e deveres de cada ente federativo. Já em 2001, houve a promulgação da Lei nº 10.172/2001, que aprovou o primeiro Plano Nacional de Educação e especificou novamente a responsabilidade dos governos estaduais pelo Ensino Médio. Houve, inclusive, a definição de meta para “aperfeiçoar o regime de colaboração entre os sistemas de ensino com vistas a uma ação coordenada entre entes federativos, compartilhando responsabilidades”, ação na qual o Fundeb e suas regras de contagem de matrículas se enquadram.

Do arcabouço legal, historicamente construído, tende a derivar um imaginário de especialização das ações educacionais dos estados e dos municípios, o que povoa o horizonte dos gestores públicos. Contudo, essa concepção pode indicar que o processo de municípios se responsabilizando pela Educação Infantil e estados pelo Ensino Médio é “uma ação sem atores”, nos termos colocados por (HALL & TAYLOR, 1996). Isso permite uma cobertura apenas parcial da questão deste ensaio, uma vez que a atuação dos entes no atendimento escolar em etapas não-prioritárias não é uma ação proibida por Lei. Há uma prioridade de atuação, não uma limitação total. Nesse sentido, há espaço para decisões individuais dos atores que fujam à sugestão constitucional – como é o caso do município de São Paulo, que mantém 8 escolas municipais de Ensino Médio.

 

Conjugação e intercâmbio das análises neo-institucionalistas

O presente ensaio tem argumentado que nenhuma das três óticas neo-institucionalistas é suficiente para captar a complexidade da formação decisória estratégica dos gestores públicos a respeito da fixação do número de matrículas em cada etapa de ensino e nem do efeito da regra institucional do Fundeb que rege a contagem de matrículas para distribuição de recursos financeiros.

Análises puras de cada escola tenderiam a dar respostas opostas e incompletas. A tese pura da escolha racional proporia que os gestores públicos agem estrategicamente buscando maximizar os recursos financeiros a se receber do Fundeb, o que levaria prefeitos a se concentrarem na Educação Infantil e governadores a se concentrarem no Ensino Médio. Trataria-se, portanto, de uma decisão individual calculadora dos atores em função das regras estabelecidas. A regra institucional do Fundeb seria, por assim dizer, um catalisador da ação e um divisor de águas (na medida que antes não havia incentivo semelhante). Embora essa análise dialogue com o movimento das estatísticas educacionais entre 2005 e 2015, ela deixa de considerar que houve na realidade uma continuação do movimento já observado entre 1996 e 2006 – o qual nada tinha a ver com a regra do Fundeb, ainda inexistente.

Já a tese pura de uma perspectiva “cultural”, unificando as contribuições das escolas institucionalistas sociológica e histórica, nos levaria a compreender que os gestores públicos estão agindo segundo um repertório cultural historicamente definido. O mindset da organização do sistema educacional é que haveria condicionado as delimitações de atendimento escolar de cada nível federativo. Teria inclusive condicionado a criação da regra de contagem de matrículas do Fundeb, mais resultado do processo cultural que indutor de mudanças culturais. A tese, contudo, não dá conta de explicar a pouca ocorrência de prefeitos que, vendo na oferta de Ensino Médio uma possível vantagem política, constroem redes municipais de atendimento de nível médio – o que seria permitido por Lei.

Como sugere (HALL & TAYLOR, 1996), é interessante que passemos a explorar um intercâmbio das análises, buscando uma compreensão híbrida que seja mais abrangente. É possível perceber que há espaço para que as duas explicações – a cultural e a calculadora – conjuguem-se e completem-se para interpretar a ação política dos gestores e os resultados factuais. Nesse sentido, esse ensaio postula que há sim uma resposta racional dos gestores públicos à regra de contagem de matrículas do Fundeb, resposta essa maximizadora na perspectiva financeira, o que inclusive se evidenciou nas falas de representantes de estados e municípios nas audiências públicas sobre o Fundeb na Câmara dos Deputados. Mas essas respostas são profundamente influenciadas pelo paradigma federativo brasileiro, o qual historicamente vinha aprofundando a delimitação de responsabilidades. De certa forma, é possível realizar a análise de que a regra do Fundeb acaba por reforçar o conjunto de demais instituições do arranjo federativo brasileiro.

Trata-se, portanto, de uma ação política que atende a preferências ao mesmo tempo instrumentais e sociais, as primeiras exogenamente definidas e as segundas endogenamente definidas. Em outras palavras, as justificativas para os comportamentos dos gestores públicos apresentam cunho instrumental, mas é imprescindível para a análise considerar que as alternativas de ação são historicamente condicionadas e determinadas.

 

Referências bibliográficas

BRASIL. Lei Nº 9.394, Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, de 20 de dezembro de 1996. Brasília, DF, 1996.

BRASIL. Lei Nº 4.024, Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, de 20 de dezembro de 1961. Brasília, DF, 1961.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília, DF, 1988.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1967. Brasília, DF, 1967.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1934. Brasília, DF, 1934 .

BRASIL. Lei Nº 10.172, Lei do Plano Nacional de Educação – PNE, de 09 de janeiro de 2001. Brasília, DF, 2001.

BRASIL. Lei Nº 11.494, de 20 de junho de 2007. Brasília, DF, 2007.

CUPELLO, N. O Impacto do FUNDEB sobre o ensino em creche. Dissertação de mestrado apresentada à PUC-Rio. 2011.

DINIZ, J. Eficiência das transferências intergovernamentais para a educação fundamental de municípios brasileiros. Tese de doutorado apresentada à Universidade de São Paulo (USP). 2012.

HALL P.; TAYLOR, R. As três versões do neo-institucionalismo. Political Studies, SAGE publications. 1996.

GOTTI, A.; XIMENES, S. Vagas em Creches e Pré-Escolas no Município de São Paulo. São Paulo: Ação Educativa; Rubens Naves, Santos Jr. Heskesh Advogados. 2012.

NORTH, D. Institutions, institutional change and economic performance. Cambridge: Cambridge U. Press. 1990.

STROM, K. Minority Government and Majority Rule. Cambridge (UK): Cambridge University. 1990.

 

[1] Inteiro teor da PEC nº 015/2015: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1198512

[2] A Câmara dos Deputados disponibiliza as apresentações dos participantes em seu sítio virtual: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/pec-015-15-torna-permanente-o-fundeb-educacao/documentos/audiencias-publicas

[3] Ver Observatório do PNE – opne.org.br.

[4] Ou seja, desconsiderando as matrículas nas redes federal e privada.

[5] 20% do montante arrecadado por sete impostos e transferências estaduais e municipais: ICMS, IPI-Exportação, IPVA, FPE, FPM, ITCMD e ITR.

[6] Definidas pela Comissão Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica de Qualidade, instituída pela Lei nº 11.494/2007.

[7] A Educação é apenas a 7ª prioridade da população brasileira, atrás da Saúde, geração de empregos, controle da inflação, aumento do salário mínimo, redução de impostos e combate à corrupção, de acordo com a pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira 2017, da Confederação Nacional das Indústrias (CNI).

[8] Não levando em conta, portanto, as matrículas nas redes federal e privada.