O texto corresponde ao Capítulo 1 da dissertação de mestrado “Equidade educacional na Federação brasileira: o papel das transferências federais aos municípios”, concluída em Abril de 2020 no âmbito do mestrado acadêmico em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (SP). De autoria de Caio Callegari e orientação de Fernando Abrucio.


 

O financiamento público da Educação brasileira é retratado por vasta literatura nacional, com diferentes segmentações de fases históricas. Neste texto, partimos da proposta de Vieira e Vidal (2015), que divide a evolução das políticas de financiamento em três grandes gerações: indefinição de recursos, vinculação de recursos e política de fundos. A divisão proposta se liga às garantias constitucionais de parcelas de impostos dedicadas ao investimento educacional como forma de construir respostas interfederativas aos desafios da Educação de qualidade como direito de todos. Essa análise baseia-se no estudo dos marcos definidores do financiamento da Educação Básica, sem adentrar no detalhe do financiamento da Educação Superior – que desde a Lei Geral de 1827 é responsabilidade principalmente da União, embora seja considerável o número de universidades estaduais e faculdades municipais.

Nos primeiros séculos de Brasil, o Estado foi praticamente ausente na função de provisão educacional à população, com agentes paraestatais tomando a responsabilidade pelo oferecimento do ensino. De acordo com Monlevade (1997), nos primeiros duzentos anos de História brasileira a Coroa portuguesa designou aos jesuítas a organização do sistema escolar formal no Brasil, garantindo terras à Companhia de Jesus para que pudesse se autofinanciar (Monlevade, 1997). Foi somente em 1760 que a autoridade da Coroa portuguesa passou a ficar a cargo da oferta educacional – atendendo sobretudo os filhos das oligarquias locais e dos profissionais liberais das maiores cidades (Cury, 2016).

Cena de atuação educativa dos jesuítas no Brasil, extraída de jesuitasbrasil.org.br

Para financiar a embrionária política educacional, foi criado em 1773 um novo tributo, o “Subsídio Literário”, cobrado sobre cada barril de aguardente nos engenhos e por cabeça de gado abatido nos açougues (Callegari, 2010). Contudo, essa fonte se mostrou insuficiente para sustentar grandes transformações em um precário sistema escolar, ainda estabelecido em uma perspectiva sobretudo privada. Segundo Cury (2016), a cobrança de tributos sobre tais produtos era pouca robusta, o que impedia uma “subvenção regular e permanente”.

A chegada de D. João VI e da família real, em 1808, transformou o sistema educacional do país, com a criação de escolas de ensino superior e um ensino secundário preparatório. O subsídio literário continuou sendo o principal meio de financiamento educacional, com alterações via decretos em 1816 e 1821 (Cury, 2016).

Em 1824, a primeira Constituição brasileira definiu como direito a gratuidade da instituição escolar primária a todos os cidadãos[1], embora não tenham sido criados meios para sua concretização, uma vez que não tocou no assunto do financiamento da Educação (Cury, 2016). Segundo Manfio e Costa (2019), a oferta educacional era centralizada no Império; apenas com o Ato Adicional de 1834 a responsabilidade passou a ser compartilhada com as províncias, dando início ao primeiro processo legal de descentralização do serviço educacional.  O Ato Adicional de 1834 manteve o subsídio literário como fonte de financiamento do ensino, mas acrescentou com tal finalidade também recursos próprios das Províncias, como os relativos a loterias e rifas. Com os recursos tributários concentrados na esfera federal, a Educação primária ficou subfinanciada, enquanto a Educação Superior passou a receber maiores investimentos (Abrucio, 2018). A perspectiva da Educação no Brasil permanecia, assim, em caráter elitista, com a maior parte dos brasileiros fora das instituições escolares e em situação de analfabetismo.

A Constituição republicana de 1891 não foi alterou o quadro predecessor (Vieira e Vidal, 2015; Cury, 2016). O financiamento do ensino primário ficou a cargo fundamentalmente dos estados, mas sem definição específica. O resultado concreto desse sistema era uma “enorme distância educacional territorial no país”, entre os estados que fizeram reformas legais próprias e aplicaram mais recursos no ensino, e os que não fizeram tal processo (Abrucio, 2018). Considerando tal revisão histórica, uma definição mais precisa do período que envolve do século XVIII ao século XX é a ausência de vinculação constitucional de recursos para a Educação e indefinição de dever federativo no financiamento.

Segundo Callegari (2016), “o ponto de inflexão em relação à importância dada pelo Estado para as políticas públicas educacionais foi o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, contemporâneo da alteração da ordem oligárquica que governava o país. Trazendo uma proposta de reconstrução educacional brasileira vinculada à defesa da escola pública, o documento trazia a preocupação com a garantia de recursos para financiar o sistema educacional, propondo a ideia de um fundo de fontes tributárias para aplicação exclusiva em Educação”. Essa nova visão educacional tinha em seu bojo também um modelo institucional de federalismo a partir de uma “nova articulação entre o governo federal e os governos subnacionais, por meio da combinação de uma política nacional com a execução descentralizada dos serviços educacionais (Abrucio, 2018)”.

Foto de Anísio Teixeira, um dos pioneiros da Educação Nova em 1932. Extraída de Carta Capital.

A partir da referência política do Manifesto, foi elaborado um novo marco legal para a Educação brasileira no contexto da Constituição de 1934. A principal novidade foi o surgimento da vinculação ampla de recursos públicos para a Educação, objetivando garantir continuidade e previsibilidade à oferta de ensino. Assim eram seus artigos 156 e 157:

“Artigo 156: A União e os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento, e os Estados e o Distrito Federal nunca menos de vinte por cento, da renda resultante dos impostos, na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos.

Parágrafo único – Para a realização do ensino nas zonas rurais, a União reservará, no mínimo, vinte por cento das cotas destinadas à educação no respectivo orçamento anual.

 Artigo 157: A União, os Estados e o Distrito Federal reservarão uma parte dos seus patrimônios territoriais para a formação dos respectivos fundos de educação.

Parágrafo 1º – As sobras das dotações orçamentárias acrescidas das doações, percentagem sobre o produto de venda de terras públicas, taxas especiais e outros recursos financeiros, constituirão, na União, nos Estados e nos Municípios, esses fundos especiais, que serão aplicados exclusivamente em obras educativas, determinadas em lei.

Parágrafo 2º – Parte dos fundos se aplicará em auxílios a alunos necessitados, mediante fornecimento gratuito de material escolar, bolsas de estudo, assistência alimentar, dentária e médica, e para vilegiaturas.”

O investimento em Educação decorrente do Art. 156 passou a ser dever do Estado, como forma de garantir direitos educacionais básicos. Chama atenção a subvinculação para a “realização do ensino nas zonas rurais”, área mais vulnerável do país, em um claro direcionamento equitativo. Ainda, vale observar que o Art. 157 traz, de forma embrionária e sem operacionalidade expressa, a constituição de fundos educacionais para os quais afluiriam sobras de dotações orçamentárias, doações e taxas especiais. Esses fundos também se destinariam, em parte, aos alunos mais vulneráveis.

Para Callegari (2016), “a partir da Constituição de 1934, a legislação sobre o financiamento público da Educação trilhou o mesmo caminho histórico da democracia brasileira: suprimida no Estado Novo de 1937, reerguida nos mesmos termos em 1946 e novamente posta de lado pelo golpe militar de 1964”. No período do primeiro governo do Presidente Getulio Vargas, a grande marca educacional foi a reorganização dos ciclos de ensino, criando prova obrigatória para ingresso no ginásio. O efeito foi a redução das taxas de escolarização e a elitização do ensino (Abrucio, 2018).

Antes de 1946, contudo, já havia movimento em favor da volta da vinculação de impostos para a Educação – manifestado na 1ª Conferência Nacional de Educação, em 1941 (Cury, 2016). Em 1942, o Decreto-Lei nº 4.958 instituiu o Fundo Nacional do Ensino Primário formado por tributos federais, com recursos aplicados em auxílios a estados, Territórios e Distrito Federal segundo suas necessidades. A assistência financeira e técnica da União era prestada apenas aos estados e municípios que aplicassem pelo menos uma parcela mínima de seus tributos no ensino – respectivamente, 20% e 15%. Em 1944, essa assistência da União ao Fundo passou a ser definida em montante equivalente a 5% do imposto de consumo sobre bebidas.

Com a Constituição Federal de 1946, a vinculação de impostos para a Educação retornou de maneira mais sólida, em 10% dos impostos federais e 20% dos impostos estaduais e municipais. Segundo Abrucio (2018), a Constituição de 1946 propôs um federalismo cooperativo, mas a “União continuou pouco presente no ensino básico público e se concentrou na ampliação de seu papel no nível superior, cabendo geralmente aos governos estaduais a gestão da Educação Básica”. O resultado disso foi a ampliação das diferenças educacionais no território nacional.

Em 1961, foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 4.024/1961), com cinco artigos sobre o financiamento educacional. No Artigo 92, ficou definida a aplicação em Educação de no mínimo 12% da receita de impostos da União e 20% das receitas de impostos de Estados, Distrito Federal e Municípios. Ou seja, dobrou-se a participação de impostos dos Municípios no financiamento e aumentou-se em 2 pontos percentuais a participação da União, sem alterações da participação dos Estados e do Distrito Federal.

O Art. 92 constituiu o Fundo Nacional do Ensino Primário, o Fundo Nacional do Ensino Médio e o Fundo Nacional do Ensino Superior, cada um contando com 30% dos recursos federais destinados à área educacional. De acordo com o Artigo 93º, esses recursos deveriam ser aplicados preferencialmente na manutenção e desenvolvimento do sistema público de ensino (Callegari, 2016).

Tais avanços foram desconsiderados pelo novo arcabouço jurídico da Constituição de 1967, instituída pelo regime militar. Com isso, retrocedeu-se em matéria de segurança e previsibilidade de recursos para a Educação, elementos fundamentais para apoiar a construção contínua de políticas educacionais sólidas nos três níveis federativos (Todos Pela Educação, 2018). O fim da vinculação de impostos foi acompanhado do Art. 170, segundo o qual as empresas eram obrigadas a manter o ensino primário gratuito de seus empregados e dos filhos destes. Isso foi operacionalizado através da instituição da contribuição do Salário-Educação, devida pelas empresas. De modo geral, o período da ditadura militar foi marcado por uma prioridade à Educação Superior, mas acompanhado de grandes ações como o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) e a tentativa de massificação da cobertura escolar no Ensino Fundamental – financiadas com os recursos do Salário-Educação (Abrucio, 2018).

A vinculação de recursos para a Educação deixou de operar no Brasil por quase duas décadas, até a votação da chamada “Emenda Calmon” (Emenda Constitucional nº 24, de 1983). Tal dispositivo definiu a aplicação pela União de no mínimo 13% e pelos Estados, Distrito Federal e Municípios de no mínimo 25% da receita resultante de impostos em manutenção e desenvolvimento do ensino. Frente à LDB de 1961, a mudança ampliou em cinco percentuais a participação tributária de Estados, Distrito Federal e Municípios no financiamento da Educação e em um ponto percentual a participação tributária da União. Na mesma época, vale citar que foi criado o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para distribuição gratuita pela União de livros didáticos para os alunos das escolas públicas brasileiras.

Foto do Senador João Calmon, autor da Emenda Constitucional nº 24/1983.

A vinculação de recursos para a Educação foi expandida pela Constituição Federal de 1988, em movimento congruente à ampliação quantitativa e qualitativa das noções do direito à Educação, especialmente em seu Art. 206. De acordo com Abrucio (2018), a transformação educacional pretendida pela Constituição se baseou na busca pela universalização do acesso à escola para todos e de forma igualitária (com obrigatoriedade da inclusão de todas as crianças de 7 a 14 anos na escola), na democratização do ensino (com a ampliação dos mecanismos de participação dos pais e da sociedade no controle democrático do sistema educacional), na profissionalização da política educacional (com mudança no perfil dos profissionais da área em todo o país, os sistemas de avaliação de desempenho e os programas de melhoria da gestão) e em um novo arranjo federativo com a municipalização do ensino e políticas de coordenação entre os entes federativos.

Como já dito, o centro do novo desenho do financiamento da Educação foi expresso no Art. 212 da Constituição Federal:

“Artigo 212: A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

Parágrafo 1º – A parcela da arrecadação de impostos transferida pela União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, ou pelos Estados aos respectivos Municípios, não é reconhecida, para efeito do cálculo previsto neste artigo, receita do governo que a transferir.

Parágrafo 2º – Para efeito do cumprimento do disposto no caput deste artigo, serão considerados os sistemas de ensino federal, estadual e municipal e os recursos aplicados na forma do Artigo 213.

 Parágrafo 3º- A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se que refere a universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do plano nacional de educação.

Parágrafo 4º – Os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde previstos no Artigo 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários.

Parágrafo 5º – A educação básica pública terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do salário-educação, recolhida pelas empresas na forma da lei.

Parágrafo 6º – As cotas estaduais e municipais da arrecadação do salário-educação serão distribuídas proporcionalmente ao número de alunos matriculados na educação básica nas respectivas redes públicas de ensino”.

Essa mudança ampliou a participação tributária da União em 5 pontos percentuais em relação à Emenda Calmon, sem alterações na vinculação mínima de impostos de municípios, estados e Distrito Federal. A partir de então, o Brasil entra em uma nova fase histórica do financiamento da Educação.

O que Vieira e Vidal (2015) definiram como período de “vinculação de recursos” (de 1934 a 1996) é, em nossa percepção, uma fase que abrange mais elementos: vinculação constitucional de impostos para a Educação, com períodos de exceção, somada à colaboração interfederativa baseada mais nos interesses do jogo político e menos em regramentos legais. Adicionalmente, consideramos que esse período se encerra em 1988, e não em 1996, pelos motivos abaixo dispostos.

A nova fase que se inicia na Constituição de 1988 passa por uma vinculação de impostos à Educação sem intermitências radicais, ainda que tenhamos alterações temporárias que flexibilizaram as vinculações durante alguns períodos, como discutiremos. Ainda, nesse período vinculou-se toda a contribuição do Salário-Educação (criado na década de 1960) à Educação Básica pública, estipulando uma divisão de seus recursos em função dos alunos matriculados nas redes de ensino. Com valores per capita iguais dentro de uma mesma Unidade da Federação, não mais variando em função única e exclusivamente da capacidade de arrecadação tributária, deu-se um passo importante em direção a um financiamento mais equitativo.

Igualmente, o parágrafo 3º do Art. 212 passou a considerar a ideia de uma distribuição dos recursos em linha com o “atendimento às necessidades do ensino obrigatório” com perspectiva de universalização do ensino, de garantia de padrão de qualidade da oferta de ensino e de equidade. Essa diretriz foi aprimorada em 1996, com a Lei nº 9.394 que estabeleceu a segunda LDB.

A nova LDB detalhou muitos dispositivos anteriores, como a aplicação de impostos pela União e pelos entes subnacionais nos mesmos termos da Constituição de Federal de 1988 (Art. 69) e as prioridades de cada ente na oferta da educação escolar (Artigos 9 a 11), em formulação alinhada à Emenda Constitucional (EC) nº14/ 96. A EC nº 14/96 e a LDB passaram a incumbir também a União da assistência técnica e financeira e do exercício de função supletiva e redistributiva perante as demais esferas governamentais.

Na tipologia de Vieira e Vidal (2015), o ano de 1996 foi o marco de fechamento da segunda geração de políticas de financiamento da Educação no Brasil. Além da LDB, o Brasil também votou a Lei nº 9.424, de 24 de dezembro de 1996, regulamentando o FUNDEF: Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério. Instituído pela EC nº14/96 via alteração do artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o FUNDEF era constituído, em cada Estado e no Distrito Federal, por 15% (60% de 25%) da receita proveniente do ICMS, IPI/Exportação, Fundo de Participação dos Estados (FPE), Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e Lei Kandir.

Em nosso entendimento, a segunda geração efetivamente se encerra na Constituição Federal de 1988, que lança as bases para um regime de colaboração interfederativa no financiamento da Educação, elemento fundamental do novo período. O conjunto normativo de vinculação de impostos, conquanto assegure segurança financeira e certa previsibilidade orçamentária na Educação, estabelece um padrão de desigualdades no financiamento da Educação no que diz respeito às diferentes disponibilidades fiscais para investimento, em função dos diferentes montantes de impostos vinculados à Educação. Entes subnacionais que arrecadam mais, muito em função de estruturas econômicas historicamente estabelecidas, têm à disposição mais recursos assegurados para a Educação.

Para combater tal desigualdade, o Artigo 211 da Constituição Federal estipulou a função redistributiva e supletiva da União, mediante assistência técnica e financeira aos estados, Distrito Federal e municípios; além disso, os entes federativos passaram a ter a incumbência de criar formas de colaboração para universalizar o ensino obrigatório. Ambos movimentos são aprofundados e operacionalizados em 1996 com a estruturação formal da “política de fundos”, através do FUNDEF.

Segundo Callegari (2015), “a orientação desse Fundo redistributivo de vigência de 10 anos era a de repartir em nível estadual os recursos exclusivos do Ensino Fundamental e seu magistério de acordo com a proporção de matrículas nas redes de ensino (aplicados fatores de ponderação diferenciais de custo aluno/ano). Os governos estaduais configuravam-se como maiores provedores de recursos do FUNDEF, posto que das fontes tributárias (exceto FPE e FPM) 75% dos recursos eram do Estado e 25% dos Municípios. Outro importante mecanismo redistributivo era a complementação de recursos pela União aos entes subnacionais que não conseguissem atingir um valor mínimo anual nacional específico por aluno após a partilha dos recursos do FUNDEF”.

O desenho do FUNDEF teve como efeito principal um processo de municipalização das matrículas do Ensino Fundamental, principalmente nos anos iniciais dessa etapa. Em diferentes velocidades e em diferentes magnitudes, tal impacto foi sentido em quase todos as Unidades da Federação do país, diante da reação das redes municipais de expandirem suas estruturas de atendimento para acolherem mais alunos e assim receberem mais recursos financeiros (Callegari, 2010).

A expansão do atendimento no Ensino Fundamental aproximou o Brasil da universalização dessa etapa. Além disso, o FUNDEF levou à melhoria salarial dos professores das regiões mais pobres do país e gerou uma redistribuição de recursos dentro dos estados, reduzindo a concentração de riqueza e pobreza (Vieira e Vidal, 2015). Mas não diminuiu tão sensivelmente desigualdade entre os estados (Gouveia e Souza, 2015), diante dos baixos valores da função equalizadora da União (complementação dos recursos dos fundos mais pobres). Os estados do Nordeste e o Pará, por exemplo, apresentaram valor aluno/ano, em 2006, 3,5 vezes inferior ao de São Paulo (Vieira e Vidal, 2015).

Outro efeito negativo do FUNDEF foi o aprofundamento da desigualdade na aplicação de recursos em relação às diferentes etapas e modalidades da Educação Básica. Ao focar no Ensino Fundamental, o novo fundo induziu os governos municipais a dedicarem menos atenção à Educação Infantil e à Educação de Jovens e Adultos (Gouveia e Souza, 2015).

O Congresso Nacional e o Governo Federal passaram então a discutir um novo fundo redistributivo que contemplasse toda a Educação Básica, em substituição ao FUNDEF. Debatido de 2001 a 2006, o FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) foi resultado de extensa pactuação legislativa. Sua inscrição legal se deu por meio da EC n°53/2006 que trouxe nova redação aos artigos 7, 23, 30, 206, 208, 211 e 212 da CF e ao artigo 60 do ACDT. Regulamentado por meio de medida provisória ainda em 2006 pelo Executivo Federal para funcionamento compulsório a partir de 1° de janeiro de 2007, o FUNDEB foi convertido na Lei n° 11.494, de 20 de junho de 2007.

Também com natureza contábil e constituído por 27 fundos estaduais, o FUNDEB guarda muitas similaridades com o FUNDEF: os fundos estaduais não se correlacionam, nem interagem entre si; abrangem, estado a estado, o governo estadual e todos os governos municipais respectivos, com o objetivo de “tornar mais efetiva a cooperação entre diferentes níveis de governo, no provimento de recursos e nas responsabilidades assumidas em relação ao atendimento e qualitativo da educação básica pública” (Callegari, 2010). A diferença entre os fundos reside fundamentalmente na abrangência em termos de etapas de ensino contempladas (do Ensino Fundamental, no FUNDEF, para todas as etapas e modalidades da Educação Básica, no FUNDEB) e nos montantes de recursos destinados compulsoriamente aos fundos estaduais, tanto por Municípios e Estados como pela União.

Segundo Callegari (2016),

“a política de fundos consolidou a atuação governamental em seus diferentes níveis como provedora de ensino básico no país, seguindo o marco legal fundado pela Constituição Federal de 1988. Ditando continuidade e previsibilidade na disposição de recursos, permitiu a concretização de políticas públicas educacionais necessárias à busca pela qualidade no ensino. No entanto, é importante destacar que ela nasce somente na última década do século XX. Durante mais de 400 anos, a nação brasileira conviveu com o descompromisso estatal em relação à garantia de meios materiais para o provimento educacional, situação que só foi alterada (não permanentemente) com a Constituição Federal de 1934, a qual estabeleceu regras de vinculação de recursos para a Educação. A história brasileira é uma história de pouca importância dada à Educação, pouco investimento realizado nesse campo social, exigindo hoje uma ampla alocação de recursos para a Educação, no sentido de mitigar essa dívida histórica. É uma história também, sem dúvida, de gigante desigualdade educacional entre suas regiões.”

 

A novidade da política de fundos (FUNDEF e FUNDEB) teve como virtude constituir um sistema de cooperação financeira entre os entes federativos a partir de parâmetros bem determinados em lei, definidos em função de necessidades educacionais (matrículas) e da disponibilidade de recursos (impostos vinculados). Trouxe, portanto, “maior consciência intergovernamental” no sentido de exercício da solidariedade federativa (Sena, 2019). Se antes parte da colaboração entre entes se dava em função do jogo político, os fundos educacionais empreenderam redistribuição automática, sem obstáculos ou condicionalidades (Sena, 2020).

Essa inovação no financiamento educacional brasileiro guarda relação com outro movimento contemporâneo: a mudança na assistência financeira (obrigatória e voluntária) da União em relação aos estados e municípios.

Em 1994, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), criado na década de 1960 para comprar de forma centralizada e distribuir gêneros alimentícios para escolas de todo o Brasil (Arretche, 2009), foi transformado em programa de distribuição de recursos financeiros (em função do número de matrículas) para que os próprios entes pudessem comprar localmente a merenda escolar. Ao mesmo tempo, foi criado o Programa Nacional de Transporte Escolar (PNTE), baseado no financiamento federal para compra de veículos escolares. Em 1995, criou-se o PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola), uma assistência financeira federal para suplementar os recursos das escolas públicas.

Na mesma Lei que dispôs sobre o funcionamento do FUNDEF (Lei nº 9.424/1996), regulamentou-se a distribuição dos recursos do Salário-Educação em 40% para cota federal e 60% para cota estadual e municipal, esta com distribuição estadual de forma proporcional à arrecadação do Salário-Educação e por número de matrículas no Ensino Fundamental na distribuição intraestadual. Em 2004, o PNTE foi transformado em PNATE (Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar), direcionando recursos não só para a compra descentralizada de veículos como para manutenção da frota de transporte. Em 2009, PNAE e PDDE tiveram suas governanças aprimoradas, com redesenho focado em ampliar as políticas e melhorar os processos de fiscalização do uso dos recursos.

Também em 2009, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional nº 59. Além de tornar a educação básica obrigatória e gratuita para faixa etária de 4 a 17 anos, esse dispositivo também tornou dever do Estado a estruturação de vários programas suplementares como material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde (Cury, 2016). O que se evidencia, portanto, é uma fase de estruturação de diversos instrumentos de financiamento, com diferentes finalidades, mas todos alicerçados na descentralização de recursos para fortalecer o pacto federativo na Educação – através de regras claras de distribuição financeira.

Entre as transferências voluntárias da União também houve significativa mudança. Elas passaram a ser organizadas por critérios técnicos, pondo fim à política de “balcão de negócios”, em que os representantes dos entes federativos solicitavam presencialmente recursos federais em troca de apoio político (Segatto, 2015). Isso se deu sobretudo a partir de 2007, com a criação do Plano de Ações Articuladas (PAR) e do Sistema Integrado de Monitoramento, Execução e Controle (SIMEC), política estruturada de concessão de transferências de acordo com necessidades diagnosticadas pelos entes.

Essa geração de políticas de financiamento alimentou, assim, a organização mais sólida de um regime de colaboração educacional:

  • Entre os níveis estadual e municipal, através das políticas de fundos, com incentivos e regras que conduziram à diminuição da duplicidade de redes no Ensino Fundamental, a um processo de municipalização, à equalização de recursos e à negociação de fatores de ponderação (Abrucio et al., 2016; Callegari, 2010);
  • Entre os níveis federal, estadual e municipal, com uma complementação da União ao FUNDEF/FUNDEB (atualmente fixada em 10% da soma dos aportes estaduais e municipais), com a criação de transferências obrigatórias universais com distribuição de recursos em função do número de matrículas (Salário-Educação, PNAE, PNATE e PDDE), com a organização das transferências voluntárias da União a partir de necessidades educacionais, com o avanço de um sistema nacional de avaliação e informação educacional (Abrucio et al., 2016), com o esforço de formação de alfabetizadores do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) formalizado em 2012 e com a estruturação em 2011 da Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (SASE/MEC) com a função de fortalecer a coordenação federativa na Educação e incentivar a cooperação entre os entes (Secretaria que operou até 2016).

 

Nessa linha, definimos que a terceira fase do financiamento da Educação no Brasil é marcada não apenas pela política de fundos, mas também pelo fortalecimento da coordenação entre entes federativos através de diferentes instrumentos. Ao lado de uma contínua vinculação constitucional de impostos para a Educação, edificou-se com maior clareza um sistema de colaboração financeira interfederativa organizado legalmente em torno de necessidades educacionais básicas, ainda que um “regime de colaboração” não tenha sido formalmente regulamentado (Abrucio et al., 2016).

Assim, estruturamos a seguinte tipologia de fases do financiamento da Educação no Brasil, em diálogo com Vieira e Vidal (2015):

Tabela – tipologia histórica proposta para três fases do financiamento da Educação no Brasil

Período Tipologia histórica de Vieira e Vidal (2015) Período Tipologia histórica proposta
Século XVIII – 1934 Indefinição de recursos Século XVIII – 1934 Ausência de vinculação constitucional de recursos para a Educação e indefinição de dever federativo no financiamento
1934-1996 Vinculação de recursos 1934-1988 Vinculação constitucional de impostos para a Educação, com períodos de exceção, com colaboração interfederativa baseada sobretudo nos interesses do jogo político
1996-atual Política de fundos 1988-atual Vinculação constitucional contínua de impostos para a Educação, com sistema de colaboração financeira interfederativa organizado legalmente de acordo com necessidades educacionais

 

Referências bibliográficas:

ABRUCIO, Fernando. Uma breve história da educação como política pública no Brasil. In: Dalmon, D. L.; Siqueira, C.; Braga, F. M. Políticas educacionais no Brasil: o que podemos aprender com casos reais de implementação?. Edições SM. São Paulo-SP. 2018.

ARRETCHE, Marta. “Continuidades e descontinuidades da federação brasileira: de como 1988 facilitou 1995”. Dados, 52. 2009.

CALLEGARI, Cesar. O Fundeb e o financiamento da Educação pública no estado de São Paulo. 5ª edição; Editora Aquariana; São Paulo-SP. 2010.

CALLEGARI, Caio. O Financiamento da Educação brasileira na perspectiva do PNE 2014-2024: considerações teóricas e práticas sobre o Custo Aluno Qualidade inicial. Tese de Graduação – Universidade de São Paulo (USP). São Paulo-SP. 2016.

CURY, C. R. J. Sistema nacional de educação: desafio para uma educação igualitária e federativa. Educ. Soc., vol.29, no.105. Campinas. 2008.

CURY, C. R. J. Vinte Anos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). Jornal de Políticas Educacionais v.10, n.20. 2016.

GOUVEIA, Andrea Barbosa; SOUZA, Ângelo Ricardo de. A Política de Fundos em Perspectiva Histórica: mudanças na concepção da política na transição Fundef e Fundeb. Em Aberto, Brasília, n. 93, v. 28, p. 45-65, jan./jun. 2015.

MANFIO, C.; COSTA, V. Políticas de educação no Brasil: desafios à regulamentação das leis e ao amplo acesso à educação pública. Revista COCAR, Belém, V.13. N.25, p. 373 a 398 – Jan./Abr. 2019.

MONLEVADE, J. Educação pública no Brasil: contos & descontos. Ceilândia, DF: Idea, 1997.

SEGATTO, C. O papel dos governos estaduais nas políticas municipais de Educação: uma análise dos modelos de cooperação intergovernamental. Tese (doutorado) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo EAESP/FGV, 2015.

TODOS PELA EDUCAÇÃO. Educação Já: Propostas para Aprimoramento nos Mecanismos de Financiamento da Educação Básica. São Paulo-SP. 2018.

VIEIRA, Sofia L. & Eloísa M. Vidal. Política de financiamento da educação no Brasil: uma (re)construção histórica. In: Alexandre José de Souza Peres & Eloísa Maia Vidal (Orgs.). O Fundeb em Perspectiva. Em Aberto, 28 nº 93; Inep/MEC; Brasília. 2015.

[1] Artigo 179, parágrafo 32º.