Artigo publicado na Revista de Política e Cultura, Ano XXI, nº, organizada pela Fundação Astrojildo Pereira. Agradecimento especial à Professora Pollyana Gama pela coordenação da edição “Educação: Presente! E o futuro?”

 

O fio histórico do financiamento da educação no Brasil

A história da sustentação financeiras das políticas educacionais no Brasil pode ser dividida em pelo menos três fases: pré-1934; de 1934 a 1988; e pós-1988. As principais diferenças entre tais ciclos dizem respeito, na avaliação de Vieira e Vidal (2015) e Callegari (2020), aos diferentes padrões de colaboração interfederativa e à existência de uma vinculação abrangente de impostos para financiar a educação pública.

Até 1934, o quadro histórico era caracterizado pela ausência de vinculação constitucional de recursos para a Educação e pela indefinição de deveres federativos no financiamento. Nos primeiros duzentos anos de História brasileira, o sistema escolar foi sustentado pelas ações dos padres jesuítas, que financiavam as atividades a partir de terras doadas pela Coroa portuguesa à Companhia de Jesus. Com a expulsão da Companhia em 1759, uma embrionária política passou a ser organizada pela Coroa, sustentada em um novo tributo, o “Subsídio Literário”, cobrado sobre cada barril de aguardente nos engenhos e por cabeça de gado abatido nos açougues (Callegari, 2010). Contudo, segundo Cury (2016), a cobrança de tributos sobre tais produtos era pouca robusta, o que impedia uma “subvenção regular e permanente”.

Até 1934, o quadro histórico era caracterizado pela ausência de vinculação constitucional de recursos para a Educação e pela indefinição de deveres federativos no financiamento.

As definições de políticas educacionais no século XIX e início do século XX, como a Constituição Federal de 1824, o Ato Adicional de 1834 e a Constituição Federal de 1891, não abordaram o assunto do financiamento da Educação. Mesmo que tenha sido iniciado o processo legal de descentralização do serviço educacional às províncias, o subsídio literário federal permaneceu como principal fonte de sustentação financeira, ao que se somaram recursos próprios de loterias e rifas em determinadas localidades.

O ponto de inflexão nessa trajetória histórica foi a primeira metade da década de 1930. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932 foi um marco na discussão da criação de uma garantia permanente e suficiente de recursos de impostos para financiar as escolas públicas, com um fundo para organizar e distribuir tais fontes tributárias. Na Constituição Federal de 1934, enfim surge uma vinculação mais ampla de recursos públicos para a Educação, objetivando garantir continuidade e previsibilidade à oferta de ensino: 10% de todos os impostos da União e dos Municípios e 20% de todos os impostos nos Estados e no Distrito Federal passaram a serem os valores mínimos de investimento na manutenção e desenvolvimento do ensino.

Inaugurou-se então uma fase de vinculação constitucional flutuante de impostos para a Educação, na qual que a colaboração interfederativa para o financiamento da educação era baseada, sobretudo, nos interesses do jogo político. A legislação sobre o financiamento público da Educação trilhou o mesmo caminho histórico da democracia brasileira: suprimida no Estado Novo de 1937, reerguida com maior intensidade de vinculação nos municípios em 1946 e novamente posta de lado com o regime militar na década 1960.

O fim da vinculação de impostos na Constituição Federal de 1967 foi acompanhado do Art. 170, segundo o qual as empresas eram obrigadas a manter o ensino primário gratuito de seus empregados e dos filhos destes. Isso foi operacionalizado através da instituição da contribuição do Salário-Educação, devida pelas empresas.

A vinculação de recursos para a Educação deixou de operar no Brasil por quase duas décadas, até a votação da chamada “Emenda Calmon” (Emenda Constitucional nº 24, de 1983). Esta definiu a aplicação pela União de no mínimo 13% e pelos Estados, Distrito Federal e Municípios de no mínimo 25% da receita resultante de impostos em manutenção e desenvolvimento do ensino.  O movimento foi ampliado pela Constituição Federal de 1988, alcançando vinculação de 18% na União e mantendo 25% para Estados e Municípios. Além disso, é importante ressaltar que o Art. 211 da Constituição Federal de 1988 estipulou a função redistributiva e supletiva da União, mediante assistência técnica e financeira aos estados, Distrito Federal e municípios. Esta foi a senha para boa parte das inovações no financiamento educacional nas décadas seguintes.

Estavam fincados os pilares para uma nova fase no financiamento da educação brasileira: a vinculação contínua (por mais de 30 anos) de impostos para a educação e a criação de um sistema de colaboração financeira interfederativa organizado legalmente de acordo com necessidades educacionais e com uma premissa de igualdade de tratamento.

 

A fase que vivemos: o financiamento pautado pela “distribuição conforme necessidades” e pela “igualdade de tratamento”

A Constituição de 1988 foi um marco na consolidação de uma arquitetura de universalização do acesso à educação pública em todos os cantos do país. A resgatada política de vinculação de impostos para a educação foi e é um fundamental indutor da qualidade do ensino: além de garantir relativa segurança para a educação no “cabo de guerras orçamentário” em cada ente federativo, a vinculação mínima teve efeito geral de incrementar os recursos destinados para a área.

Contudo, apesar de favorecer a autonomia da gestão regional e local, uma consequência desse arranjo foi o aprofundamento de iniquidades entre municípios e entre Unidades da Federação. Esse fenômeno deriva de uma matemática simples: 25% de muitos impostos em município rico significa muito orçamento para investir em educação; já 25% de uma parca receita tributária representa recursos insuficientes para qualidade da oferta educacional. Tal desigualdade já era patente no financiamento a partir do Salário-Educação.

O Salário-Educação foi justamente um dos primeiros instrumentos a serem alterados no novo capítulo do financiamento educacional brasileiro. Sua divisão passou a ser de acordo com a participação de cada Unidade da Federação na receita tributária, e dentro de cada Unidade a divisão passou a ser em função dos alunos matriculados nas redes municipais e estaduais de ensino. Isso resultou em valores per capita iguais dentro de uma mesma Unidade da Federação, não mais variando em função única e exclusivamente da capacidade de arrecadação tributária.

Uma distribuição de recursos de acordo com o número de alunos matriculados representa uma “distribuição de acordo com as necessidades” de cada rede. Afinal, a matrícula é a unidade básica para organização dos insumos educacionais de um sistema de ensino – quanto mais alunos, mais professores, mais profissionais da educação, mais escolas, mais materiais didáticos, mais consumo de água e luz, etc.

A grande inovação nesse sentido, contudo, não se deu na mudança do Salário-Educação, que passou a ter papel secundário com a vinculação de impostos para a manutenção e desenvolvimento do ensino. A principal mudança foi a aprovação, em 1996, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – o FUNDEF.

Instituído pela Emenda Constitucional nº 14/96 via alteração do artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o FUNDEF era constituído, em cada Estado e no Distrito Federal, por 15% (60% de 25%) da receita proveniente do ICMS, IPI/Exportação, Fundo de Participação dos Estados (FPE), Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e Lei Kandir. A orientação desse Fundo redistributivo – de vigência de 10 anos – era precisamente a de repartir em nível estadual os recursos exclusivos do Ensino Fundamental de acordo com a proporção de matrículas nas redes de ensino; havia ainda uma complementação de recursos pela União aos estados que não conseguissem atingir um valor mínimo anual nacional específico por aluno.  O resultado principal foi uma redistribuição de recursos dentro dos estados, reduzindo a concentração de riqueza e pobreza; uma substantiva elevação do investimento por aluno nos municípios mais pobres (o piso passou de R$ 342 por aluno/ano em 1996 para R$ 1.432 em 2006[1]).

A década de 1990 também foi marcada por outros importantes movimentos de criação de políticas de financiamento da Educação no modelo “conforme necessidades” e perspectiva igualitária. Em 1994, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), criado na década de 1960 para comprar de forma centralizada e distribuir gêneros alimentícios para escolas de todo o Brasil, foi transformado em programa de distribuição de recursos financeiros para que os próprios entes pudessem comprar localmente a merenda escolar conforme o número de alunos na rede de ensino. Nesse mesmo período, foram criados o Programa Nacional de Transporte Escolar (PNTE), baseado no financiamento federal para compra de veículos escolares, e o PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola), uma assistência financeira federal para suplementar os recursos das escolas públicas – ambos com valores transferidos em proporcionalidade ao número de matrículas.

A conjugação de tais políticas levou à forte indução do avanço no atendimento escolar que se observou após a Constituição de 1988: afinal quanto mais matrículas um ente possuía, mais recursos para a educação eram recebidos. À época, contudo, o movimento se deu de forma localizada no Ensino Fundamental, uma vez que a educação somente era considerada obrigatória para crianças de 7 a 14 anos de idade. Isto posto, o reflexo negativo que foi observado país afora foi um desestímulo aos governos municipais dedicarem atenção à Educação Infantil e à Educação de Jovens e Adultos.

O Congresso Nacional e o Governo Federal passaram então a discutir um novo fundo redistributivo, em substituição ao FUNDEF, que contemplasse toda a Educação Básica e ampliasse a base de recursos tributários distribuídos. Debatido de 2001 a 2006, o FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação. Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) foi aprovado por meio da Emenda Constitucional n°53/2006.

O resultado principal [do FUNDEF] foi uma redistribuição de recursos dentro dos estados, reduzindo a concentração de riqueza e pobreza; uma substantiva elevação do investimento por aluno nos municípios mais pobres (o piso passou de R$ 342 por aluno/ano em 1996 para R$ 1.432 em 2006.

A primeira década do século XXI teve ainda outros importantes movimentos que deram maior sustentação às políticas de financiamento conforme necessidades dos entes federativos: o PNTE foi transformado em PNATE (Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar), direcionando recursos para manutenção da frota de transporte em função do número de alunos matriculados em áreas rurais. Em 2009, PNAE e PDDE tiveram suas governanças aprimoradas, com redesenho focado em ampliar as políticas e abarcar novos fatores de ponderação.

Entre as transferências voluntárias da União também houve significativa mudança. Elas passaram a ser organizadas por critérios técnicos, pondo fim à política de “balcão de negócios”, em que os representantes dos entes federativos solicitavam presencialmente recursos federais em troca de apoio político (Segatto, 2015). Isso se deu sobretudo a partir de 2007, com a criação do Plano de Ações Articuladas (PAR) e do Sistema Integrado de Monitoramento, Execução e Controle (SIMEC), política estruturada de concessão de transferências de acordo com necessidades auto-diagnosticadas pelos entes.

Em conclusão, a tônica do período pós-Constituição de 1988, no que tange ao financiamento da educação, foi uma abrangência cada vez maior da lógica de transferências conforme necessidades. Via de regra, tais transferências (sobretudo as legais e constitucionais) se deram mediante fórmulas de distribuição por valores per capita. A lógica de valores por aluno uniformes atende ao princípio de igualdade (nacional no caso das políticas federais, e estadual no caso do FUNDEB), em que cada aluno deve receber o mesmo valor de investimento por parte do poder público em uma determinada perspectiva federativa. Contudo, os diferentes fatores de ponderação e os regramentos das políticas levam a diferentes resultados redistributivos.

O caráter redistributivo de uma política de financiamento da educação diz respeito ao quão progressivo ou regressivo é o seu efeito do ponto de vista de enfrentamento de desigualdades marcantes do Brasil contemporâneo. Em resumo, uma política regressiva amplia as desigualdades, distribuindo mais recursos para municípios em condições socioeconômicas mais vantajosas; já uma política progressiva reduz as desigualdades ao destinar mais recursos para aqueles em maior desvantagem.

A análise quantitativa de Callegari (2020) revela que, apesar do princípio de igualdade, algumas políticas federais distribuem mais recursos aos municípios mais ricos comparativamente aos mais pobres. É o caso do PNAE: com valores per capita maiores para os alunos das creches, o programa beneficia mais intensamente municípios com maior taxa de atendimento de 0 a 3 anos – sendo estes historicamente os municípios mais desenvolvidos economicamente.

Paralelamente, os fundos estaduais do FUNDEB e a distribuição dos recursos do Salário-Educação acabam refletindo desigualdades entre os estados brasileiros, com valores por aluno maiores nos estados mais ricos. Enquanto no Rio Grande do Sul o valor aluno/ano do FUNDEB para a creche integral é de R$ 6.429 em 2021, no Maranhão esse valor é de R$ 4.882 (24% menor).

Uma política regressiva amplia as desigualdades, distribuindo mais recursos para municípios em condições socioeconômicas mais vantajosas; já uma política progressiva reduz as desigualdades ao destinar mais recursos para aqueles em maior desvantagem.

O financiamento “conforme necessidades”, portanto, não necessariamente produz equidade e diminuição dos abismos entre as oportunidades educacionais em diferentes territórios. É por isso que um novo modelo, marcado por transferências progressivas, faz-se imprescindível para a construção de um Brasil socialmente mais justo e com excelência na educação.

 

Elementos de um novo capítulo do financiamento marcado pela equidade e justiça social

No centro da agenda educacional em discussão no país, vem ganhando destaque a percepção de que populações mais carentes recebem oportunidades educacionais mais precárias, considerando a infraestrutura das escolas, a formação dos professores e o acesso à escola em tempo integral (Simielli, 2015; Buarque, 2015; Todos Pela Educação, 2018), o que fratura a conformação de um avanço sistêmico e, sobretudo, sustentável na qualidade da Educação. De forma convergente, os organismos internacionais da área da educação têm evidenciado que investir mais em alunos e regiões mais vulneráveis gera maiores retornos em termos de resultado de aprendizagem (Unesco, 2019).

A noção de equidade educacional é aqui compreendida como a garantia de igualdade de oportunidades para que todas as crianças e jovens frequentem unidades educacionais, se desenvolvam e adquiram os conhecimentos e habilidades adequados às suas idades. Na prática, considerando as restrições inerentes à atuação do setor público (orçamentárias e administrativas), isto pressupõe o empreendimento de ações compensatórias e redistributivas que objetivem dar mais recursos pedagógicos e financeiros para quem é fiscal e socioeconomicamente mais vulnerável e para quem tem menos oportunidades educacionais. Ou seja, tratar desigualmente os desiguais ao beneficiar os mais vulneráveis e equilibrando as balanças da justiça social. No campo do financiamento da educação, tal operação equitativa ocorre por pelo menos três caminhos de transferências:

1. Políticas equitativas focalizadas a partir de condicionante de acesso para entes federativos:

Uma transferência de recursos educacionais pode ter um caráter focalizado e compensatório se alcançar somente um determinado rol de entes federativos ou unidades de ensino identificados como vulneráveis. Um exemplo desse tipo de transferência foi a primeira versão da regra de acesso ao PAR, em junho de 2007, que buscava limitar o acesso às transferências voluntárias de apoio federal aos municípios com baixo Índice de Qualidade da Educação Básica (IDEB). No Estado de São Paulo, por exemplo, somente 19 dos 645 municípios tiveram acesso à primeira versão do PAR. Esse funcionamento foi posteriormente alterado para abarcar mais entes federativos sem critério de acesso.

Outro exemplo que pode ser considerado como política focalizada com condicionante de acesso para entes federativos é a Complementação da União ao FUNDEB. Até 2020, somente recebiam tais transferências as redes de ensino em estados cujo valor aluno/ano médio do FUNDEB fosse inferior ao valor mínimo nacional. Essa política, cuja magnitude orçamentária é 10% do montante total da soma dos fundos estaduais do FUNDEB, teve importante efeito equalizador e é a mais progressiva transferência do Ministério da Educação (Callegari, 2020), tendo sido mantida e aprimorada no novo ciclo do FUNDEB.

2. Política equitativa sem condicionante federativo de acesso, mas voltada exclusivamente à população vulnerável:

Esse tipo de transferência de recursos educacionais pode atingir todo o universo de entes federativos ou unidades escolares, mas é voltada ao financiamento exclusivo de oportunidades educacionais para uma população vulnerável, de maneira que localidades com maior presença de população vulnerável recebem mais recursos. Esse é o caso de duas transferências federais: o PNATE, já apresentado anteriormente; e o Brasil Carinhoso[2].

A população vulnerável alvo do PNATE é o conjunto de alunos residentes nas áreas rurais. Todos os municípios com alunos em zonas rurais recebem recursos, de acordo com um valor per capita. Quanto mais ruralizado o município, mas apoio suplementar recebe do Governo Federal para financiar seu transporte escolar. Já a população vulnerável do Brasil Carinhoso é o conjunto de alunos de 0 a 48 meses de idade cujas famílias sejam beneficiárias do Programa Bolsa Familia. Assim, no Brasil Carinhoso, os municípios recebem um valor per capita em função do número de alunos vulneráveis matriculados em creche.

3. Política equitativa com ponderação redistributiva em favor da equidade:

O terceiro modelo de transferência equitativa de recursos educacionais é realizado sem limitar o público de entes federativos, unidades escolares ou alunos beneficiários de uma política pública. Com caráter universal, o funcionamento compensatório dá-se por meio de fatores de ponderação diferenciados para direcionar mais recursos para os mais vulneráveis ou mais necessitados de apoio financeiro, promovendo justiça social ao tratar desigualmente os desiguais. No Brasil[3], o PNATE contempla traços dessa perspectiva: o valor por aluno destinado para cada município é diferenciado de acordo com o Fator de Necessidade de Recursos do Município (FNR-M). Fundamentalmente, quanto maior a extensão territorial do município, maior a necessidade de recursos e, portanto, maior o fator de ponderação de suas matrículas.

 

Tal análise permite identificar que o Brasil já possui experiências de transferências equitativas que, a partir de seus funcionamentos progressivos, promoveram ou promovem o enfrentamento das desigualdades. Contudo, ainda são mais de elementos excepcionais em um modelo de financiamento cujo eixo principal ainda é pautado mais pela lógica de tratamento igualitário e pela preservação das desigualdades regionais. Não à toa, os estudantes mais pobres dispõem de menos recursos financeiros para investir em Educação – em média, 44% a menos em 2019.

Mas o pilar fundamental para mudança desse cenário pode ter sido lançado no final de 2020, após quatro anos de intensa discussão sobre o desenho do novo FUNDEB. Aprovado por meio da Emenda Constitucional (EC) nº 108/2020 e pela Lei Federal nº 14.113/2020, os novos regramentos da principal política de financiamento da educação brasileira incorporam sensíveis inovações no sentido de promover equidade educacional no país.

 

As mudanças do novo FUNDEB e a agenda de transformação para enfrentamento das desigualdades

Ainda é cedo para dizer se as alterações estruturais realizadas no FUNDEB em 2020, com vigência a partir de 2021, inauguram um novo capítulo histórico do financiamento educacional. A concretização de tais mudanças ainda depende de uma série de regulamentações que podem ou não encarar adequadamente as desigualdades de oportunidades de ensino de qualidade para as crianças e jovens. Além disso, o Congresso Nacional ainda discute propostas do Governo Federal no sentido de acabar com as vinculações constitucionais de recursos para a educação[4] e de instituir política de vouchers para acesso a creches privadas[5], que podem fazer o Brasil rumar em direção ao passado, desmontando a arquitetura de colaboração interfederativa para promoção de avanços no atendimento, fluxo e qualidade educacional.

O Brasil já possui experiências de transferências equitativas que, a partir de seus funcionamentos progressivos, promoveram ou promovem o enfrentamento das desigualdades. Contudo, ainda são mais de elementos excepcionais em um modelo de financiamento cujo eixo principal ainda é pautado mais pela lógica de tratamento igualitário e pela preservação das desigualdades regionais. Não à toa, os estudantes mais pobres dispõem de menos recursos financeiros para investir em Educação – em média, 44% a menos em 2019.

Sem embargo, o novo desenho do Novo FUNDEB é definitivamente marcado pela premissa da equidade. Além de seu caráter permanente definido pela EC nº 108/2020, que dá segurança e sustentabilidade jurídica à política pública no decorrer dos próximos governos, são três principais inovações promotoras de redistribuição de recursos que tendem a elevar as condições de financiamento

Em primeiro lugar, a Complementação da União ao FUNDEB será ampliada em 130% de 2021 até 2026. Em valores atuais, passará de R$ 16 bilhões para R$ 37 bilhões, gradualmente ao longo dos próximos anos. Isso significará mais recursos para os municípios mais carentes, uma vez que a Complementação da União ao FUNDEB é uma “política equitativa focalizada a partir de condicionante de acesso para entes federativos”.

Em segundo lugar, tal transferência também teve seu desenho redistributivo alterado. Antes de 2021, 100% dos recursos eram distribuídos às Unidades da Federação (estados) com valor aluno/ano abaixo do mínimo nacional, de tal forma que alcançassem esse parâmetro básico de investimento educacional. Internamente dentro de cada estado, o valor transferido era repartido entre as redes estadual e municipais de ensino conforme o número de matrículas em cada uma delas, mantendo equalizada a média de valor aluno/ano do FUNDEB naquele estado.

O debate público, contudo, evidenciou que tal modelo desconsiderava uma imensa concentração de recursos vinculados à educação fora do FUNDEB – como os 25% constitucionalmente vinculados do IPTU, ISS e ITBI, além do Salário-Educação, royalties do petróleo e gás e outros tributos. Municípios com muitos recursos para a educação extra-FUNDEB, como as capitais de estados do Nordeste, recebiam recursos da Complementação da União por estarem em estados pobres, enquanto municípios pobres em estados relativamente ricos (como no Vale do Jequitinhonha) não recebiam o apoio federal no FUNDEB. A ineficiência alocativa, do ponto de vista da equidade, era da ordem de 31% do total transferido via Complementação da União (Tanno, 2017).

O novo desenho do Novo FUNDEB é definitivamente marcado pela premissa da equidade.

Assim, apurou-se a lente redistributiva do FUNDEB para identificar os menores valores aluno/ano totais (VAAT) e garantir que todos os municípios brasileiros, independente do estado de origem, alcançassem um VAAT mínimo nacional. A negociação no Congresso Nacional manteve o modelo de Complementação para estados mais pobres, evitando gerar perdas, mas o fez em uma transição para um modelo híbrido: 80% toda ampliação da transferência federal se dará no novo formato VAAT que destinará recursos para quem de fato mais precisa – os municípios com baixa capacidade de investimento em educação.

Os outros 20% de ampliação da Complementação da União (cerca de R$ 4 bilhões) terão um terceiro modelo de distribuição. Embora sua fórmula não esteja regulamentada, a arquitetura constitucional do FUNDEB aponta que essa transferência (chamada de “VAAR”) beneficiará os municípios que tiverem mais avanços em seus resultados de aprendizagem, ao mesmo tempo em que reduzam as desigualdades de resultado entre os alunos. Essa transferência tende a ser pró-equidade em dois aspectos: em primeiro lugar, estimula diretamente o enfrentamento das desigualdades; além disso, beneficia os municípios que têm hoje piores condições de aprendizagem e que tem, por isso, mais espaço de avanço em seus indicadores[6].

A terceira inovação do FUNDEB do ponto de vista de equidade é a previsão constitucional de fatores de ponderação relativos ao nível socioeconômico dos alunos, à disponibilidade fiscal dos entes federativos e à capacidade arrecadatória destes. Considerando que o FUNDEB redistribui os recursos dos fundos estaduais conforme a soma ponderada de matrículas em cada rede de ensino, a introdução desses fatores de ponderação fará com que aquelas redes com maior participação de alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica e com piores condições fiscais de investimento em educação recebam relativamente mais recursos. A depender do desenho de tais fatores há a possibilidade de uma relevante redistribuição de recursos no interior de cada estado.

O terreno para construção de políticas equitativas com ponderações redistributivas em favor da equidade, ilustrada por essa inovação do FUNDEB, é promissor e particularmente fértil para uma agenda de transformação educacional para enfrentamento das desigualdades – sobretudo a nível federal.

Normativamente, para romper a lógica observada na Educação brasileira, uma distribuição injusta de insumos educacionais deveria ser equilibrada através de ações compensatórias redistributivas que deem mais recursos pedagógicos e financeiros para quem é socialmente mais vulnerável e para quem tem menos oportunidades educacionais. E no quebra-cabeça federativo, é a União quem tem a principal incumbência legal no combate às desigualdades educacionais (conforme Art. 211 da Constituição Federal).

A agenda de mudanças deve contemplar não apenas uma regulamentação robusta e inteligente dos novos fatores de ponderação de equidade do FUNDEB e de uma fórmula pró-equidade para a complementação VAAR. É possível e necessária uma revisão integral, a partir da lente conceitual da equidade, de todo o conjunto de transferências federais de recursos educacionais para Estados e Municípios, fortalecendo um regime cooperativo que tenha como pedra angular a equidade.

O Salário-Educação pode ser repensado de forma a contemplar uma distribuição dos recursos mais equitativa entre as Unidades da Federação, ainda que isso possa resultar em perdas de recursos em localidades onde há maior atividade econômica. Já as transferências obrigatórias do PNAE, PNATE e PDDE podem manter suas funções de financiamento de atividades e práticas específicas, mas podem ser tornadas ainda mais equitativas com a consideração de ponderações dos valores per capita por vulnerabilidade socioeconômica. Pode haver, ainda, uma priorização de acesso a recursos das transferências voluntárias para os municípios mais necessitados, com apoio técnico do Ministério da Educação para prestação de contas e para facilitação do acesso ao sistema de pleito de transferências.

Para enveredar em um novo capítulo do financiamento da educação constituído por reformas redistributivas, será preciso um quádruplo esforço: primeiro ponto, fazer a defesa da lógica da vinculação tributária para a educação e do investimento público na educação pública como elementos basilares de uma rota da equidade, evitando a desorganização do sistema nacional cooperativo existente; segundo, garantir o aperfeiçoamento dos sistemas de dados que permitirão esquadrinhar continuamente as desigualdades (e assim redesenhar as políticas existentes), como o SIOPE, a Matriz de Saldos Contábeis, o Censo Escolar, as avaliações nacionais de aprendizagem e o Censo Demográfico; terceiro, manter o compromisso das regulamentações pró-equidade do FUNDEB em 2022 e 2023, conforme orienta a Constituição Federal; e, por fim, realizar transformações nas principais políticas do MEC. Assim, passaremos de um modelo de financiamento “conforme necessidades” e de tratamento igualitário para um arcabouço fundamentado em justiça social e tratamento equitativo.

 

Referências bibliográficas

BUARQUE, Cristovam. A Revolução Republicana na Educação. Ed. Moderna. 2015.

CALLEGARI, Cesar. O Fundeb e o financiamento da Educação pública no estado de São Paulo. Ed. Aquariana. 2010.

CALLEGARI, Caio. Equidade educacional na Federação brasileira: o papel das transferências federais aos municípios. Tese apresentada ao curso de Mestrado da Fundação Getulio Vargas. 2020.

CURY, C. R. J. Vinte Anos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). Jornal de Políticas Educacionais, v.10, n.20. 2016.

SEGATTO, Catarina; ABRUCIO, Fernando. Cooperação em uma federação heterogênea: o regime de colaboração na educação em seis estados brasileiros. Revista Brasileira de Educação v. 21 n. 65 abr.-jun. 2016.

SIMIELLI, Lara. Equidade educacional no Brasil: análise das oportunidades educacionais em 2001 e 2011. Tese apresentada ao curso de Doutorado da Fundação Getulio Vargas. 2015.

TANNO, Claudio Riyudi. Universalização, Qualidade e Equidade na Alocação de Recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB): Proposta de Aprimoramento para a Implantação do Custo Aluno Qualidade (CAQ). Estudo Técnico nº 24/2017 da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. 2017.

TODOS PELA EDUCAÇÃO. Relatório “Educação Já”. Versão para debate. 2018.

UNESCO. Manual para a medição da equidade na educação. 2019.

VIEIRA, S; VIDAL, E. Política de financiamento da educação no Brasil: uma (re)construção histórica. In: INEP. O Fundeb em Perspectiva. Brasília-DF. 2015.

 

[1] Em valores atualizados pelo IPCA para 2020.

[2] Criado em 2012, chegou a ter orçamento de R$ 1,1 bilhão em 2014, sendo desidratado desde então até alcançar apenas R$  82 milhões em 2018.

[3] No contexto internacional, o modelo desenvolvido pelo Chile a partir de 2008 tornou o padrão de financiamento no país mais redistributivo ao garantir um valor extra para as escolas em função do número de alunos de baixo nível socioeconômico matriculados  (funcionando tal como um fator de ponderação).

[4] Proposta de Emenda à Constituição nº 186/2019, a chamada “PEC Emergencial”.

[5] A proposta anunciada pelo Governo Federal é destinar cupons de R$ 250 por aluno/mês para as famílias matricularem seus filhos em escolas privadas de educação infantil. Tal como observado na experiência chilena da década de 1980, o recurso provavelmente significará apenas parte da mensalidade, com as famílias tendo que arcar com o restante, sendo que o valor tende a aquecer com o subsídio federal. Isso porque o valor de R$ 250/mês é inferior até mesmo ao valor mínimo por aluno do FUNDEB para as creches em 2021, de R$ 408/mês.

[6] Em suma, a nova complementação da União em 2026 (R$ 37 bilhões) passará a ter três partes com diferentes efeitos de equidade: 43% no modelo antigo que diminui a desigualdade entre estados; 46% no modelo VAAT, que alcança os municípios mais pobres de cada estado brasileiro; e 11% no modelo no modelo VAAR, orientado para a melhoria em qualidade e equidade dos resultados de aprendizagem.