A reorganização escolar da rede estadual de São Paulo foi apresentada pelo Governo do Estado na data de 23 de setembro de 2015, como resposta à tendência de queda de 1,3% ao ano da população em idade escolar no Estado de São Paulo. Entre os anos de 1998 e 2015, a rede estadual de ensino perdeu 2 milhões de alunos – 300 mil por redução da população de 4 a 17 anos no Estado e outros 1,7 milhão de jovens e crianças que deixaram a rede estadual pelos processos de municipalização de ensino e expansão da rede privada. A Secretaria de Educação do Estado identificou que esse movimento demográfico acabou por gerar ociosidade das escolas da rede, o que deveria ser corrigido a partir da reestruturação dos ciclos de ensino nas escolas e do fechamento de um determinado número de estabelecimentos.

Nesse matiz, a proposta de reorganização representaria a execução de um esforço para elevar a eficiência do gasto público em educação no Estado: adequar (leia-se, reduzir) a estrutura da rede a um menor número de alunos, utilizando o alívio da pressão demográfica para especializar as escolas em um único ciclo de ensino (Ensino fundamental 1, Ensino fundamental 2 ou Ensino Médio). De acordo com a Secretaria de Educação, a divisão das escolas por ciclos só traria benefícios ao sistema educacional estadual. A alteração acabaria por gerar a especialização de 754 escolas, o fechamento de 94 escolas e a transferência de 340 mil alunos.

Foi nessa conjuntura que organizou-se em todo o Estado de São Paulo um movimento orgânico dos estudantes secundaristas contra reorganização. A favor da concessão de voz ativa à comunidade escolar, os estudantes passaram a ocupar suas escolas e a questionar as motivações das mudanças previstas pelo Governo do Estado, levantando muitas das questões citadas acima. O movimento alcançou 200 escolas ocupadas e obteve, no dia 5 de dezembro,  a suspensão da reorganização da rede estadual pelo Governo do Estado, mérito da manifestação contínua do interesse do corpo discente em participar ativamente das decisões que afetam sua trajetória escolar. Na sequência dos fatos, o Secretário Estadual de Educação Herman Voorwald pediu demissão do cargo, dando lugar a José Renato Nalini, ex-Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.

A mudança administrativa ocorreu de forma concomitante à definição de uma nova estratégia do Governo paulista: uma reorganização paulatina, velada, fugindo dos holofotes da mídia e da sociedade civil. Ao invés de fechar escolas, ação que polemiza pela sua magnitude, o Governo estadual passou a encerrar turmas. Segundo o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), 913 turmas foram fechadas no ínicio do ano letivo em 39 regiões do Estado – ainda faltam informações sobre outras 54 regiões. O efeito desejado pela nova ação – e seus impactos colaterais perniciosos –  é praticamente o mesmo da proposta inicial da Secretaria.

‘Fazer mais com menos’? Antes de apresentar os efeitos pedagógicos potenciais da proposta de reorganização, é importante realizar breve foco na questão de elevação da eficiência. Em tese, a racionalização de gastos educacionais permitiria redirecionamento de um mesmo montante de recursos educacionais para políticas que propiciem melhores condições de aprendizagem, o que é consensualmente um objetivo louvável. Fosse a proposta governamental uma mera questão de fazer mais com os mesmos recursos, a reorganização partiria de um princípio virtualmente inconteste de racionalização da gestão. No entanto, a Secretaria admitiu, na data de 04 de dezembro, que a racionalização proposta objetivava reduzir o montante de recursos investidos para um alinhamento às limitações orçamentárias do Estado – ou seja, fazer o mesmo com menos. Essa diferença aparentemente sutil é crucial para todos aqueles que defendem que a Educação não deve ser alvo de cortes orçamentários. Além disso, revela que a melhoria da qualidade educacional não é a suma finalidade da reorganização, sendo objetivo paralelo à redução de despesas.

Para contextualizar a necessidade de desenvolvimento qualitativo na Educação pública paulista, vale citar alguns dados: o Estado possui mais de 1,3 milhão de analfabetos com 15 anos de idade ou mais; 1 em cada 9 crianças do 3o ano do Ensino Fundamental não tem alfabetização adequada em leitura; 1 em cada 6 crianças do 3o ano do Ensino Fundamental não tem alfabetização adequada em escrita; 3 em cada 8 crianças do 3o ano do Ensino Fundamental não tem alfabetização adequada em matemática; 45,2% das crianças concluem o Ensino Fundamental 1 sem o aprendizado adequado em matemática, e 41% em língua portuguesa; 80,3% dos jovens concluem o Ensino Fundamental 2 sem o aprendizado adequado em matemática, e 67,1% em língua portuguesa. E considerando a rede total do Estado (pública e privada), 88,3% dos jovens concluem o Ensino Médio sem o aprendizado adequado em matemática, e 64,1% em língua portuguesa.

Efeitos na aprendizagem. A proposta de reorganização da rede possui pontos de incidência que potencialmente tem impacto positivo nos resultados de aprendizagem. A “especialização” das escolas por ciclo de ensino pode permitir processos de adequação da infraestrutura escolar para uma determinada faixa etária, de edificação de um projeto político-pedagógico alinhado às exigências de ensino de cada etapa e de simplificação da rotina de trabalho dos docentes (que em tese poderão ter sua carga horária alocada em menos escolas; hoje, 7,3% dos professores da Educação Básica da rede estadual de SP trabalham em 3 estabelecimentos ou mais). Entre os potenciais benefícios da medida também está a redução nos conflitos entre alunos de idades diferentes.

É importante apontar, nesse contexto, que não estão previstos mais recursos para adequar a infraestrutura das escolas ao oferecimento de um determinado ciclo, o que pode inviabilizar um dos efeitos positivos previstos da proposta. Além disso, uma gama de aspectos pedagógicos podem gerar efeitos arriscadamente negativos da reorganização nos resultados de aprendizagem dos estudantes, principalmente se levada a cabo a medida de transferência de alunos:

  • A medida de transferência de alunos poderá gerar descontinuidades na trajetória escolar dos estudantes: mudança de estrutura de escola, de grupo de amigos e de ritmo de estudo (pela diferente gestão pedagógica da nova escola). Com frequência tais descontinuidades são deletérias no processo de aprendizagem dos estudantes. Os laços afetivos com as escolas (o que inclui segurança e estabilidade) são fundamentais para uma trajetória progressiva no ensino.
  • A transferência de estudantes para escolas com pior Ideb ou Idesp também produziria uma potencial quebra em relação à qualidade educacional ofertada às famílias envolvidas.
  • A alteração da localização da escola que o aluno frequenta pode gerar amplas dificuldades cotidianas de mobilidade das famílias. Pedagogicamente, isso pode trazer danos como o distanciamento das famílias da rotina escolar do estudante, a ampliação de atrasos e faltas e a potencial escalada na taxa de abandono escolar já no Ensino Fundamental 1 – quando é mais improvável que o estudante possa se locomover sozinho para a escola. É preciso ainda considerar que a medida poderia separar familiares que frequentavam uma mesma escola, o que pode ampliar as dificuldades logísticas das famílias.
  • Além disso, alteração da localização da escola que o aluno frequenta pode gerar elevação da violência contra a criança e o jovem, que poderá ter de cruzar territórios urbanos inseguros. Esse foi um dos efeitos da similar reorganização da rede estadual de São Paulo em 1995, empreendida pelo então Governador Mário Covas.
  • A especialização das escolas por ciclos pode aumentar ainda mais o abismo entre as condições de ensino do 5o para o 6o ano do Ensino Fundamental, e do 9o ano do Ensino Fundamental para a 1a série do Ensino Médio. A desarticulação entre os ciclos de ensino impede que o processo de aprendizagem seja mais progressivo e, portanto, ininterrupto.
  • A transferência em massa de estudantes pode causar superlotação de salas de aula na rede estadual, deteriorando as condições de ensino-aprendizagem nas escolas. Hoje, a média de alunos por turma na rede estadual já é superior ao que estipula o Parecer CEB/CNE n 8 de 2010 como relação adequada de alunos por turma: 24 alunos por turma no Ensino Fundamental 1 (a rede estadual possui média de 27,7); 30 alunos por turma no Ensino Fundamental 2 (a rede estadual possui média de 31,4); e 30 alunos por turma no Ensino Médio (a rede estadual possui média de 34,3).
  • É importante considerar que há um processo intenso de trocas e aprendizado no relacionamento de alunos mais novos com alunos mais velhos. A divisão das escolas por ciclos seria impeditivo a essa interação potencialmente positiva entre crianças e jovens de diferentes faixas etárias.
  • A especialização das escolas por ciclos, concomitante às alterações realizadas pela Secretaria Estadual no Plano Estadual de Educação (PEE), deve gerar um processo de fortalecimento da municipalização do Ensino Fundamental no Estado. À revelia do Fórum Estadual de Educação (que redigiu a maior parte do PEE), foi incluída uma meta 21 que efetivamente determina a municipalização total do oferecimento dos anos iniciais do Ensino Fundamental (EF1). Essa política jogaria para os municípios a responsabilidade pelo oferecimento dessa etapa de ensino, o que pode levar à piora na qualidade educacional, em virtude da estrutura precária de gestão de muitas redes municipais e das dificuldades orçamentárias dos municípios em momento de crise de arrecadação.

É importante pesar qual seria o impacto positivo da medida de reorganização frente às alternativas de utilização de salas eventualmente ociosas. Por exemplo, poderia aproveitar-se o espaço sub-utilizado na rede para promover inclusão de crianças e jovens fora da escola, a partir de um trabalho de busca ativa. Hoje são aproximadamente 245 mil jovens paulistas de 15 a 17 anos fora da escola. Além disso, a ociosidade das escolas poderia ser utilizada para ampliar o número de estudantes que recebem Educação em tempo integral. Na rede pública de Ensino Médio do Estado de São Paulo, composta nessa etapa de ensino quase que exclusivamente por escolas da rede estadual, somente 3% das matrículas são em tempo integral. Outra opção seria utilizar a ociosidade de salas para ampliar a oferta de matrículas no turno diurno; hoje, 38,4% das matrículas na rede pública paulista de Ensino Médio regular são no turno noturno. A expansão das matrículas no turno diurno, ampliação da Educação integral e a redução do número de alunos por turma – cuja situação já foi apresentada – devem ser tratadas como políticas alternativas para melhorar os resultados  de aprendizagem dos estudantes paulistas.

De acordo com a Secretaria de Educação do Estado, a proposta de reorganização teve como base um estudo interno que revelava desempenho superior no Idesp de escolas com ciclo único, tratando-se portanto de evidência de que a especialização das escolas revelaria à melhoria dos resultados de aprendizagem. No entanto, o estudo é frágil e sem rigor científico, não apresentado elementos para fundamentar, nem sequer sugerir, que escolas de ciclo único possuem melhor desempenho no Idesp. Uma crítica detalhada e contundente ao estudo-base da Secretaria foi apresentada por pesquisadores da UFABC. O documento está disponível no seguinte link:

https://avaliacaoeducacional.files.wordpress.com/2015/12/reorganizac3a7c3a3o-sp-anc3a1lise-da-ufabc.pdf

Na realidade, a forma como a política de reorganização foi estruturada, formulada e implementada traz potenciais riscos que superam os possíveis benefícios. Sobram muitas dúvidas sobre a motivação pedagógica da mudança, sobre os parâmetros de escolha das escolas afetadas, sobre as condições das escolas que receberão mais alunos, sobre os deslocamentos que serão exigidos das famílias. Ao proceder a implementação de forma opaca, o Governo deflagrou um movimento caótico na rede de ensino, fruto sobretudo da desinformação, o que persiste neste início de ano letivo. Ao desconsiderar o diálogo com a comunidade escolar, o Governo ampliou a margem para ocorrência de descontinuidades deletérias na trajetória de aprendizagem dos estudantes.

Nesse contexto, urge atender as demandas discentes que se manifestaram no desenrolar do debate sobre a reorganização da rede,  por meio da criação de instrumentos de gestão democrática nas escolas, com participação de estudantes, professores, funcionários e representantes das famílias, permitindo que toda a comunidade escolar possa participar dos processos decisórios que afetem as condições de ensino. Paralelamente, é importante promover, nas escolas da rede estadual, eleições abertas para os grêmios estudantis, como forma de catalisar a organização das demandas dos estudantes para melhoria do ensino, além de fortalecer a participação dos estudantes na elaboração de atividades extraclasse nas escolas. Dá-se, dessa forma, forte impulso ao protagonismo e amadurecimento cidadão dos jovens paulistas.

Faz-se imperativo, também, a organização de estudos detalhados da realidade de cada escola da rede, sendo estes divulgados para a sociedade e debatidos com a comunidade escolar. Esses estudos, que podem dar base sólida para a política pública, devem considerar impactos no cotidiano das famílias afetadas, adequação de mobilidade geográfica de alunos e professores, além das condições de infraestrutura e de alunos por turma das escolas que receberão matrículas ou turmas transferidas. É necessária também a organização de estudos robustos, com rigor científico, sobre os benefícios em resultados de aprendizagem da política de ciclo único nas escolas. Ademais, seriam cabíveis estudos paralelos sejam realizados para averiguar se outras alternativas não seriam mais benéficas para a rede, como a ampliação do Ensino Integral, a redução dos alunos por turma e a ampliação das matrículas no turno diurno em relação ao turno noturno.

Análise elaborada por membros do Grupo de Estudos Econômicos em Educação da USP, acerca da proposta de reorganização escolar do Governo do Estado de São Paulo. As opiniões contidas na análise não são partilhadas por todos os membros do grupo.

 

Referências de estudos e dados: