Quando olhamos para a história da educação brasileira, vemos que ela sempre foi marcada por fortes desigualdades: ora pelo não acesso ao sistema escolar, ora pela exclusão dentro do próprio sistema ou, ainda, pelo acesso a padrões diferentes de qualidade educacional.

Os efeitos desse quadro de exclusão são perversos. Durante muitos anos, aqueles que não tinham acesso ao sistema educacional e eram analfabetos não tinham o direito de votar. Hoje em dia o não acesso à boa educação pode ser empecilho para o exercício efetivo da cidadania e para a inserção adequada no mercado de trabalho. Além disso, as desigualdades educacionais podem contribuir para o aumento das desigualdades econômicas

Dessa forma, políticas educacionais que promovam acesso mais igualitário são importantes tanto para a plena cidadania quanto para a redução da desigualdade em nossa sociedade. Diante desse quadro, é importante compreender o quadro da desigualdade educacional no Brasil. A desigualdade educacional pode ser olhada por três dimensões, conforme a formulação do sociólogo Marcel Crahay: de acesso aos diferentes níveis educacionais, de tratamento e de desempenho.

Para uma análise mais aprofundada de cada dimensão você pode ler o texto Dimensões da Desigualdade no Brasil. Aqui, pretendo discutir brevemente como estamos em cada dimensão de desigualdade educacional.

 

A desigualdade de acesso

A busca pela igualdade de acesso ao sistema escolar geralmente é a primeira meta dos sistemas públicos de ensino que buscam a universalização da educação. No Brasil, esse foi o foco de políticas de expansão do sistema do século passado, com a instituição da obrigatoriedade e gratuidade do sistema educacional.

A desigualdade de acesso pode ser captada pela taxa de atendimento por quartil de renda familiar. A taxa de atendimento mostra a proporção da população de cada faixa etária que frequenta a escola, independentemente do nível de ensino cursado. Essas taxas desagregadas são divulgadas pelo Observatório do PNE, e é possível compará-las pelo gráfico 1.

 

Na faixa etária correspondente ao Ensino Fundamental (6 a 14 anos) a desigualdade é mínima. Já no atendimento às crianças de 0 a 3 anos e dos jovens de 18 a 24 anos ela é mais pronunciada, sendo que a taxa de atendimento do quartil mais rico é mais do que o dobro dos 25% mais pobres.
Desigualdade de tratamento

A segunda concepção de igualdade educacional é a de tratamento: as condições da oferta do ensino devem ser iguais para todos. Políticas como o FUNDEB e o Piso Salarial Profissional Nacional têm como objetivo ampliar a homogeneização da qualidade da oferta escolar. Uma boa maneira de olhar para a desigualdade de tratamento é por indicadores de infraestrutura escolar.

O grupo de pesquisadores liderado por Neto analisa a infraestrutura das escolas de Educação Básica brasileiras, encontrando que 44,5% têm infraestrutura considerada elementar, que são escolas que têm apenas itens elementares como água, sanitário, energia, esgoto e cozinha; 40% têm infraestrutura básica, o que significa que além dos itens elementares tem também itens como sala de diretoria e equipamentos como TV, DVD, computadores e impressoras; e apenas 15,5% das escolas têm infraestrutura mais sofisticada do que essas.

Baseado em dados dos questionários contextuais da Prova Brasil de 2009, o ex-presidente do Inep, Francisco Soares, identifica que a distribuição de infraestrutura no Brasil é prejudicial aos alunos mais pobres no artigo “Educação, Desigualdade e Pobreza” (2014). O autor divide as escolas públicas em três grupos: i)com mais de 50% de alunos nos quintis 1 e 2 de nível socioeconômico; ii)mais de 50% de alunos nos quintis 4 e 5 de nível socioeconômico; iii)as outras escolas. A partir da análise das condições de infraestrutura em cada um desses grupos, Soares constata que os alunos mais pobres estudam nas escolas com pior infraestrutura.

 

A desigualdade de conhecimentos adquiridos

A última dimensão da desigualdade considerada nesse texto é a de conhecimentos adquiridos ao longo do sistema educacional. Ela ganha relevância principalmente a partir de estudos internacionais da década de 60 e 70 que mostraram o efeito das desigualdades iniciais nos resultados finais dos alunos: o nivelamento das condições de ensino não era suficiente para reduzir as desigualdades uma vez que ainda eram observadas fortes disparidades nos resultados dos alunos das diferentes classes sociais.

Logo, surge um movimento que defende que não bastaria a igualdade de tratamento, já que ela não considera as desigualdades iniciais, desencadeando a defesa da equidade no aprendizado. O ideal em um sistema equitativo é que os alunos de todos os grupos tenham a mesma probabilidade de sucesso educacional e bom desempenho. A discriminação positiva é defendida, ou seja, os recursos deveriam ser diferenciados conforme a necessidade do aluno ou da escola. Por exemplo, o Relatório Equity and Quality in Education: suporting disadvantaged students and schools, publicado pela OCDE em 2012, sugere que escolas que enfrentam maiores desafios deveriam receber maior apoio financeiro, técnico e pedagógico.

A defesa de políticas de discriminação positiva também é feita pelo sociólogo francês Marcel Crahay no livro “Poderá a escola ser justa e eficaz? Da igualdade das oportunidades à igualdade dos conhecimentos”, que advoga pela Pedagogia do Domínio dos Conhecimentos, para a qual o ensino deve ser organizado em função de objetivos educacionais que devem ser obtido por todos. De acordo com essa concepção, o grau de aprendizado atingido por um estudante depende do tempo necessário que o aluno precisa para aprender um certo domínio de competências de acordo com suas características cognitivas e sociais e o tempo consagrado ao aprendizado. Portanto, para obter um mesmo grau de aprendizagem, é aceitável que o tempo de consagrado pelos alunos variem, pois o tempo necessário varia.

Francisco Soares discute a evolução da desigualdade de desempenho no sistema brasileiro de 2005 a 2011, a partir da comparação dos resultados na Prova Brasil dos alunos que pertencem aos quintis de maior e de menor nível socioeconômico, observando que a diferença dos resultados aumentou durante esses anos. O autor acusa a política educacional de por vezes ter se focado apenas na melhoria do desempenho médio das redes de ensino, o que pode ser feito com aumento da desigualdade.

 

A interdependência das dimensões da desigualdade educacional

Até aqui, foram discutidas as dimensões da desigualdade educacional isoladamente. No entanto, também é importante entender que uma dimensão afeta a outra, e como a aparente redução da desigualdade educacional em uma dimensão pode, na verdade, corresponder a um aumento da desigualdade em outra dimensão.

Um primeiro ponto a ser discutido é que só podemos falar que um sistema é igualitário no desempenho quando na dimensão do acesso não há mais desigualdades: todos estão na escola. Ou seja, do que adiantaria ter um sistema em que todos têm desempenho igual se apenas uma parcela pequena da população o frequentasse?

Outra questão a ser colocada é como a desigualdade de conhecimento em níveis básicos afeta a desigualdade de acesso em níveis mais avançados do sistema? Se pensarmos no vestibular e no acesso ao Ensino Superior, essa relação é bastante clara: os estudantes que cursaram melhores escolas na Educação Básica têm maiores chances de conseguir entrar em cursos universitários.

E o que acontece quando um nível de ensino é universalizado, e, portanto, a desigualdade em seu acesso é praticamente nula? De acordo com a hipótese da desigualdade efetivamente mantida, quando um nível ou etapa de escolarização se encaminha para a universalização, por vezes ele tende a ter uma diferenciação interna alargada. Essa hipótese sugere então que a redução da desigualdade no acesso pode gerar um aumento da desigualdade de conhecimento. Outra possibilidade é que haja um deslocamento das desigualdades pelos níveis de ensino. Ou seja, quando um nível básico de ensino é universalizado, seu diploma passa a valer menos, e a diferenciação entre os estudantes desloca-se para os níveis superiores.

 

A preocupação com as desigualdades educacionais nas políticas públicas

Diante do quadro analisado fica claro que a desigualdade educacional deve ser considerada na formulação de políticas públicas. O Plano Nacional de Educação tem algumas metas e estratégias que a levam em consideração, como a estratégia 7.9 , que busca reduzir a diferença nas avaliações de larga escala, e a estratégia 7.18 , que define uma série de itens de infraestrutura que devem estar presentes em todas as escolas até o final da vigência do plano.

Em contextos municipais surgem algumas políticas que têm como principal objetivo a redução da desigualdade educacional. Um bom exemplo é o Projeto Equidade, de Curitiba. A secretaria municipal desse município selecionou um grupo de escolas que tinham baixo desempenho e atendiam uma população vulnerável para ter uma ação mais focalizada. Os principais resultados da política estão divulgados em seu relatório de avaliação do projeto.

A discussão sobre os meios de reduzir a desigualdade educacional deve estar sempre presente. Se na dimensão do acesso ela é mais objetiva, via ampliação do sistema público escolar, no âmbito da desigualdade de conhecimento ela é mais complexa, pois passa pela definição de quais conhecimentos devem ser adquiridos por todos os alunos brasileiros.