Há dois assuntos no olho do furacão do debate educacional brasileiro hoje: os reflexos da pandemia de Covid-19 e o fim do FUNDEB. A centralidade de ambos se deve à urgência da ação pública para evitar desastres educacionais que certamente não se restringirão a 2020. Mas também diz respeito às oportunidades que temos para melhorar a Educação brasileira a partir das decisões estratégicas que agora faremos. Estamos num momento em que os turbulentos mares à nossa frente se abrirão, permitindo enxergar o caminho para um novo paradigma?

Primeiro, vamos à aflição de curto prazo – o fim do FUNDEB pode acontecer no próximo reveillón, caso até o final do ano não votemos a PEC 015/2015. Da noite de 31 de dezembro para a manhã do dia 1 de janeiro, professores e professoras em todo o Brasil poderão ter pouco ou nenhum motivo para celebrar. Sem o FUNDEB, roupas brancas e brindes dificilmente trarão a perspectiva de um ano melhor. Dois em cada três municípios possivelmente estarão em situação de subfinanciamento crítico a partir de 2021. Nos mil municípios mais vulneráveis do país, os recursos vinculados à Educação cairiam 50% ou mais. Isso porque o mecanismo “Robin Hood” do FUNDEB – que transfere recursos dos municípios que têm mais para os que têm menos – cessaria de funcionar.

Basicamente, o FUNDEB é uma estrutura composta por 27 fundos equalizadores, um cada Unidade da Federação, que repartem parte dos recursos vinculados à Educação de acordo com o número de matrículas em cada rede pública. Um município contribui ao FUNDEB com uma proporção fixa da sua capacidade de arrecadação tributária; e recebe de volta um valor proporcional ao número de matrículas que sua rede possui. Se esse município tem, na comparação relativa com os demais entes federativos do seu estado, mais matrículas que impostos arrecadados, o seu resultado líquido com o FUNDEB será positivo. É um jogo redistributivo, de soma zero, que favorece os municípios que mais precisam.

Por isso o FUNDEB recebe a alcunha de política “Robin Hood”. Seu fim significaria um salto das desigualdades, com uns ganhando e outros (os mais vulneráveis) perdendo. Mas será mesmo que esse apelido dá conta de sintetizar a sua importância para o Brasil?

Dois em cada três municípios possivelmente estarão em situação de subfinanciamento crítico a partir de 2021. Nos mil municípios mais vulneráveis do país, os recursos vinculados à Educação cairiam 50% ou mais.

Para responder a isso precisamos olhar para a história do financiamento da Educação brasileira, que pode ser dividida em três fases. Do século XVIII a 1934, inexistia vinculação constitucional de recursos para a Educação e não havia definição de dever federativo no financiamento. De 1934 a 1988, passamos a ter vinculação constitucional (com períodos de exceção), mas a colaboração interfederativa era baseada sobretudo nos interesses do jogo político. Somente com a Constituição Federal de 1988 ingressamos em uma fase de vinculação constitucional contínua de impostos para a Educação, com sistema de colaboração financeira interfederativa organizado legalmente de acordo com necessidades educacionais.

O FUNDEB é a marca central da fase que atualmente vivemos. Consolida a vinculação de recursos e a utiliza para operacionalizar um sistema cooperativo focado nos alunos. E equivoca-se quem pensa que o FUNDEB foi uma conquista somente dos municípios mais pobres e que atende apenas ao (fundamental) princípio da equidade. Não se trata de uma redistribuição forçada e, portanto, não se trata de uma política “Robin Hood”, que rouba de uns para dar a outros.

O FUNDEB foi criado em 2006 seguindo uma tradição de visão educacional construída desde o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932. A chamada “política de fundos” ganhou concretude com o FUNDEF, implementado em 1998, precedida de intensa discussão na sociedade e no Congresso. Essa política pública tinha como objetivos dois interesses nacionais: estimular a universalização do ensino fundamental, ampliando a escolaridade e reduzindo o analfabetismo na população brasileira; e garantir uma capacidade mínima de financiamento educacional em cada localidade, de forma a contrabalancear o movimento de descentralização assimétrica originado na Constituição Federal.

O FUNDEB ampliou essa lógica para toda a Educação Básica, a lógica do bem-comum e da proteção social em todo o território brasileiro, numa ação concertada e pactuada entre todos os atores políticos relevantes. E por isso, é melhor entender o FUNDEB como uma política “Nelson Mandela”, não como política “Robin Hood”.

Nelson Mandela, líder sul-africano democraticamente eleito que atuou fortemente contra as iniquidades raciais, teve como principal mensagem a unificação de seu país em uma trajetória comum de desenvolvimento. Assim também é o FUNDEB: congrega esforços nacionalmente, combate a miséria educacional e permite a consolidação de uma cidadania verdadeira. Afinal, os direitos à escola e à aprendizagem são pré-condições da cidadania no século XXI.

Nesse entendimento talvez esteja também a semente do próximo passo da Educação brasileira rumo a um paradigma de oportunidades de qualidade para todos. O nosso caminho pode ter como norte a cooperação federativa e a equidade nacional, coadunadas em um desenho operacionalmente exequível. Certamente nos movemos nessas direções nas últimas décadas, mas ainda há muito para ser feito. Não é uma tragédia nacional que apenas 23% das nossas crianças concluam o ensino fundamental sabendo o que deveriam em matemática?

É para desafiar e vencer essa tragédia que precisamos tanto do FUNDEB com os seus efeitos de política “Nelson Mandela” cada vez mais potentes. Por isso precisamos votar com tanta urgência o novo FUNDEB – evitando desastres e rumando para um paradigma de solidariedade nacional e cidadania avançada.